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A cidade como galeria: estudantes ocupam as ruas com arte que escapa dos museus e toca o cotidiano

A cidade como galeria: estudantes ocupam as ruas com arte que escapa dos museus e toca o cotidiano

Mostra “Sereno Adentro” transforma ruas de Pelotas em espaço vivo de arte e escuta, com mais de 30 artistas da UFPel espalhando obras no Centro e no Porto

Quando o sereno vira convite: a cidade como obra em transformação

Pelotas amanheceu, por dias, coberta por uma névoa espessa, uma umidade que parecia se infiltrar em tudo. Foi dessa sensação física — tão familiar à cidade — que nasceu a proposta da mostra Sereno Adentro. E se a arte também se infiltrasse assim? Aos poucos, em silêncio, transformando o espaço urbano sem pedir licença?

A ideia ganhou corpo nas mãos dos estudantes do 7º semestre do Bacharelado em Artes Visuais da UFPel, e desde 13 de agosto, vem ocupando ruas, muros e praças do Centro e do Porto com intervenções urbanas que propõem outro modo de ver — e viver — a cidade. A mostra segue até o dia 27 e reúne mais de 30 artistas em ação.

Durante entrevista ao Contraponto, os artistas Allende Decásperi e Amanda Trapp explicaram que o sereno virou metáfora da exposição: não se trata de invadir o espaço urbano com força, mas de infiltrar-se nele com sutileza e permanência sensível. Assim como a umidade se deposita sem alarde, a arte também se faz presente — provocando, mas sem ruído.

E a provocação não é só estética. É também política. É uma forma de romper com o enclausuramento da arte nas galerias e museus. “Colocar arte na rua é dizer que todos têm direito ao encontro com ela — e que a cidade pode ser, também, um espaço de delicadeza”, explicou Amanda.

Do banhado ao tapume: obras que falam com o chão que pisamos

Cada artista da mostra escolheu um ponto da cidade para intervir — não de forma aleatória, mas em diálogo com sua própria poética. Amanda Trapp, gravurista natural de Camaquã, instalou um tecido impresso que liga, simbolicamente, o banhado onde cresceu com o solo úmido de Pelotas. “É um trabalho que faz essa ponte entre o verde da minha terra e o concreto da cidade”, explicou.

Já Allende Decásperi decidiu colar uma imagem barroca de São Sebastião — colorida e folhada a ouro — no tapume de um banheiro público. A técnica, inspirada no lambe-lambe, subverte a lógica tradicional da obra sacra e a insere no espaço urbano como uma espécie de espelho: “Há um espelhamento entre o dourado da imagem e o alumínio do tapume. É um deslocamento total.”

Além desses dois exemplos, a mostra conta com zines escondidas em lavanderias, pequenas caixas metálicas com pinturas que o público pode levar, colagens em postes, tecidos em árvores. “Tem artistas que instalaram múltiplas versões da mesma obra em locais diferentes. Outros que criaram peças únicas. A diversidade técnica e conceitual é imensa”, explicou Amanda.

Mas o mais importante, reforçam ambos, é que o espaço não serve apenas como suporte — ele participa da obra, interfere nela, responde. Isso transforma completamente a lógica da produção artística, e exige dos artistas um olhar atento ao entorno e à reação do público.

Efêmera e necessária: a beleza da arte que desaparece

Nada na mostra Sereno Adentro é permanente. E isso não é um problema — é parte da proposta. “A arte urbana é efêmera. A gente sabe que, em algum momento, alguém vai cobrir, arrancar ou apagar. Mas o que fica é o que ela provoca”, diz Allende. O seu trabalho, por exemplo, já enfrenta a possibilidade de ser substituído por uma nova intervenção de grafite prevista na programação do Dia do Patrimônio.

Amanda contou que o trabalho dela também corre o risco de sumir a qualquer momento. Mas isso não causa dor — causa atenção. “O que me marca é como as pessoas reagem. Às vezes não falam nada, mas a forma como olham, como se aproximam, como fotografam, tudo isso é uma forma de retorno”, diz.

Esse contato direto com o público — fora do contexto institucional — amplia os sentidos da obra. “É como se a arte estivesse pedindo passagem, mas sem alarde. Quem quiser ver, vai ver. Quem quiser levar, pode levar”, conta Amanda. E muitos levam: zines, pinturas, lembranças. E, principalmente, memória.

“A gente tem apego, claro. Cuidamos do processo, pensamos cada detalhe. Mas se a obra desapareceu porque alguém quis, é porque atravessou. E isso, pra mim, é o que mais importa”, conclui Amanda.

Caminho aberto: um mapa para se perder — e se encontrar

A mostra pode ser visitada de forma livre, seguindo um mapa virtual disponível no Instagram da Galeria A Sala (@asalagaleria). A cada dia, novas imagens são postadas, com localizações e registros. Mas a experiência vai além do que está mapeado: parte do encanto da proposta é se deparar com o inesperado, com o que já foi, com o que ainda está por vir.

Para quem percorre o trajeto completo, há a chance de perceber os diferentes estilos, materiais e linguagens. Para quem encontra só um fragmento, há o convite ao espanto. E para quem chega tarde demais, talvez reste o rastro — a marca de que algo esteve ali. “Mesmo que a pessoa não encontre tudo, vai encontrar outra coisa. Vai ver o que ficou. Vai andar pela cidade com outro olhar”, diz Allende. É esse o grande gesto da mostra: reencantar o cotidiano com presença artística. Transformar a pressa em pausa, o concreto em poesia, o descuido em atenção.

E para quem não puder percorrer as ruas, os registros seguem sendo publicados até o final da mostra. Há também uma intervenção especial de projeção urbana prevista para os próximos dias. “Fiquem atentos ao perfil, porque vai acontecer e vai sumir rápido”, avisa Amanda. Como tudo que o sereno toca: vem de leve, transforma, e segue adentro.

Serviço

Mostra de Intervenções Urbanas “Sereno Adentro”

De 13 a 27 de agosto de 2025

Regiões do Centro e do Porto de Pelotas

Mapa das obras: Instagram @asalagaleria

Artistas: Estudantes do 7º semestre de Artes Visuais – Bacharelado (UFPel)

Promoção: Galeria A Sala | Centro de Artes – UFPel

Coordenação: Prof.ª Dr.ª Kelly Wendt


*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.


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