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Adaptação às traições? Nem pensar (Por Leonardo Melgarejo)

Adaptação às traições? Nem pensar (Por  Leonardo Melgarejo)

O Papa Francisco tem razão e é certeiro em sua afirmativa de que vivemos período de grande degradação ética e moral. Aliás, quando ele diz que todos os outros problemas da sociedade moderna decorrem desta infâmia, não há como negar. A passividade que nos domina induz a adaptações vergonhosas, coniventes com traições que se acumulam a cada dia, contra a dignidade e os direitos humanos.

Vejam que apesar da ciência demonstrar que os ecocídios ampliam os riscos de zoonoses como a covid, e que os povos indígenas são os jardineiros dos ecossistemas, não nos indignamos com o avanço do Projeto de Lei (PL) 490/2007. Apoiado na maracutaia do “marco temporal”, este PL busca inviabilizar as demarcações e portanto a proteção de territórios indígenas.

Esta semana, cerca de 800 indígenas de mais de 30 povos, vindos de todas as regiões do Brasil, passam fome e frio, em Brasília, tentando bloquear esta traição contra todos nós. A propósito da importância desta questão, veja entrevista com Tainá Majorara e acompanhe o site do Cimi.

Aquele movimento visa brecar medidas tomadas pela Funai bolsonarista. Facilitadoras da rapinagem dos territórios indígenas (e de suas áreas ainda não homologadas), apontam para menor proteção e assistência àqueles povos. Traição que ameaça extinguir povos, com sua sabedoria, arte e cultura sem igual. Traição que ameaça acabar com os rios voadores que lá se originam e garantem a pujança das lavouras e a produção de energia em hidroelétricas do Centro Sul.

E como a vida decorre da interconexão dos ecossistemas, os crimes contidos naquele movimento contra os índios se relacionam a traições que envolvem a privatização da Eletrobrás. Neste caso está em risco não apenas a soberania energética nacional. O projeto do senador Marcos Rogério (DEM-RO), que tem se notabilizado como a “estrela bolsonarista”, ou o  “Rolando Lero” da CPI da COVID, foi aprovado por 42 senadores, e agora volta à Câmara, em urgência.

Segundo a Fiesp, com isso deputados e senadores estarão garantindo um prejuízo de R$ 400 bilhões para todos nós. E os problemas vão bem além das cifras. Considere-se as dificuldades de gestão integrada dos fluxos dos rios, quando as represas tiverem donos comprometidos com lucros de acionistas, motivados pela venda de energia e sem preocupação com os outros usos da água. Considere-se a necessidade de integração entre as várias fontes de energia e sua canalização para “compensações” em casos de problemas. Lembre-se da população do Amapá com o “apagão” de “energia privatizada”. Eles foram socorridos pela existência de uma Eletrobrás estatal, nacionalmente articulada. Considere-se também o estímulo a termoelétricas à base de carvão e suas implicações sobre o aquecimento global e a poluição na região Metropolitana de Porto Alegre, para ficarmos em implicações paroquiais do voto do senador Heinze, que mesmo sendo quem é, ainda sonha ser governador gaúcho.

E para completar este quadro, vejamos em detalhe o que se passa com o PL260/2020, que pretende destruir nossa lei dos agrotóxicos. Tramitando em regime de urgência, a pedido do governador Leite, o PL260 tem sido objeto de muitas críticas e algumas poucas defesas verdadeiramente ousadas em seus argumentos. Esta semana, após Audiência Pública presidida pela deputada Zilá Breitenbach, circulou entre nós Parecer Técnico assinado conjuntamente por técnicos do Ministério Público Estadual, da Seapi e da Fepam. No fundamental de seu conteúdo, foi reiterado naquela AP pelo Dr. Daniel Martini (MPE/RS) e por representante do CEVS.

Trata-se, essencialmente, de substituição de exigência contida na nossa lei 7747/1982 (onde está explicitada a necessidade de “aprovação no país de origem”), por formulação onde se deveria impedir o uso, no RS, de agrotóxicos “proibidos no país de origem”. Assumia-se que a “inexistência da cultura/praga no referido país de origem”, dado que “produtos para uso em culturas ou pragas inexistentes no país não têm como ser autorizados” comprometiam o texto e feriam o espírito da lei original, cuja intenção legal seria “de impedir o uso de agrotóxicos proibidos no país de origem”.

Supondo que os defensores desta proposta não avaliaram adequadamente suas implicações, e temendo que desta forma possam estar contribuindo involuntariamente para o sucesso de pretensões favoráveis a interesses transnacionais, e ameaçadoras à nossa população, passo a argumentar.

Os agrotóxicos mais perigosos e mais usados, são os herbicidas. Eles se classificam em produtos especializados na eliminação de plantas de folhas largas (no caso do 2,4D), ou de folhas estreitas (como o Glufosinado de Amonio), ou qualquer tipo de vegetal (como o Glifosato). A função destes venenos é fazer “capina química”, destruindo plantas indesejáveis, que concorram por água e nutrientes, com as plantas de lavoura.

Estes venenos são aplicados em pré-plantio e nas entrelinhas das culturas de interesse, sejam elas lavouras de grãos, açaí ou papoulas. Os mesmos venenos servem para limpar entre as linhas de papoula na Holanda e guaraná na Amazônia. Simples assim. Os herbicidas não são produzidos para culturas específicas, mas sim para destruição de plantas que emerjam junto a elas. Neste sentido, considerando aquela classificação, possuem validade geral, ainda que a dosagem de uso dependa das lavouras onde serão aplicadas. Matarão monocotiledôneas, dicotiledôneas, ou ambas. As exceções, que envolvem plantas geneticamente modificadas não se aplicam neste caso. Até porque aqui no RS só temos lavouras de milho e soja transgênicos, que também existem na Europa e estão sujeitas aos mesmos tratamentos químicos.

Os insetos que temos no Brasil e não temos na Europa, ou no Japão, e assim por diante, também podem ser classificados em categorias “de interesse”.  São chamados de “pragas” aqueles insetos sugadores (como o pulgão, os percevejos) e mastigadores (como as lagartas), que podem comprometer a rentabilidade das lavouras. Os inseticidas são aplicados objetivando paralisar o ataque de insetos. Muitos deles o fazem atingindo o sistema nervoso central, de modo a levar à paralisia e morte. Portanto, os mesmos inseticidas atuam sobre diferentes tipos de insetos, quer ataquem lavouras na índia ou na Argentina, provocando paralisia. A dosagem técnica dependerá da cultura e dos insetos, mas o produto afetará também os aplicadores, em qualquer país.

Apesar da Anvisa assumir, por exemplo, que os resíduos do inseticida malation no brócolis de consumo brasileiro possa ser 250 vezes maior (5mg/kg) do que o destinado aos europeus (0,02 mg/kg) não há justificativa biológica para isso, que também nada tem a ver com os insetos daqui e de lá. Em outras palavras, não existem venenos específicos para insetos brasileiros.  Considere-se, como exemplo, que para argumentar pela inocuidade das plantas transgênicas BT, sobre os organismos não alvo (insetos de importância ecológica presentes nas lavouras), a CTNBio tem aceito estudos com Chrysoperla carnea, inseto do norte da Europa, que não existe no Brasil.

Observe-se, agora, o fato de que no governo Bolsonaro já foram autorizados mais de 1200 agrotóxicos “novos”, que se sobrepõe ao universo que pode ser aplicado no Brasil. Atualmente 70% dos venenos que aqui circulam seriam altamente perigosos, correspondendo a algo em torno de 20% do total mundial não fosse recente reavaliação de toxicidade, pela Anvisa, que passou a interpretá-los como menos perigosos.  

Enfim, estes “novos venenos” não correspondem a moléculas mais modernas e seguras. Se trata, essencialmente, de variações e combinações sobre os mesmos temas. Assim, bastará que uma transnacional são submeta um novo arranjo de formulações maquiadas à análise de risco da Comunidade Econômica Europeia, para que eles não venham a ser proibidos por lá. Com isso, ao trocarmos a exigência de “aprovação para uso”, pela de “proibição para não uso”, estaremos validando, aqui, traições do presente, do passado e do futuro. Venenos neurotóxicos, genotóxicos, teratogênicos, sem antídoto e com impacto sobre o sistema reprodutivo, que hoje são comercializados irregularmente em nosso RS, passarão a ser “legais”. E os lixos químicos que estão sendo desprezados (a ponto de nem ser tentada sua regulamentação de uso) nos países responsáveis, serão canalizados para cá.

Por estes motivos nossa lei exige, muito sabiamente, aprovação na origem.

Oculta na tentativa de mudança capitaneada pelo PL260/2020 há enorme traição a ser avaliada com cuidado por todos os gaúchos. A lei 7747/82 foi aprovada por unanimidade na Assembleia gaúcha daquele ano e os parlamentares de hoje devem considerar suas responsabilidades em relação à memória e aos compromissos dos gaúchos daquele tempo em que passar vergonha deixava marcas.

Vamos admitir que os defensores deste PL 260 estejam mal informados e que por isso se empenharão em retirar o pedido de urgência e ampliar os debates públicos, cotejando prejuízos e benefícios até aqui anunciados.

E que não esperem que abaixemos a cabeça, de novo e de novo, até nos transformarmos nas pessoas que eles gostariam que fossemos.

Com certeza estão passando dos limites, e com isso não vamos nos acostumar.

Nando reis e Arnaldo Antunes – não vou me adaptar

Confira a coluna em aúdio.

Fonte: Brasil de Fato RS

Imagem: Brasil de Fato


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