Bastidores do filme “Vó África” revelam desafios e potências de uma produção feita em Pelotas
Bastidores do filme “Vó África” revelam desafios e potências de uma produção feita em Pelotas
Uma história que atravessa o tempo e resgata vozes silenciadas
Em meio às tensões do Brasil sob a ditadura militar e às cicatrizes ainda abertas da escravidão, nasce “Vó África – Em busca dos velhos trilhos”, filme que será rodado em Pelotas e promete impactar pela sua narrativa profunda e potente. A produção, ambientada entre as décadas de 1960 e 1970, traz à tona a vida de África, uma mulher negra liberta da escravidão que enfrentou o apagamento histórico e social. Seu cotidiano é atravessado por dissabores que marcaram a existência de muitos como ela — anônimos, sem registro, vítimas de um progresso que os excluiu.
No programa Contraponto da RádioCom, a produtora Gabriela Barenho e o diretor e roteirista Nando Ramoz compartilharam os bastidores do projeto, que está em fase final de pré-produção. Durante a entrevista, eles relataram os desafios enfrentados, o simbolismo por trás das escolhas de locação e a importância política e social da obra.
Desafios estruturais e resistências cotidianas
A equipe de “Vó África” encara entraves significativos na preparação para as filmagens. O principal deles envolve a empresa CEEE Equatorial Energia, que, segundo os entrevistados, tem se negado a colaborar com a remoção ou isolamento de cabos de alta tensão que impossibilitam a restauração da fachada da Casa Oca — prédio cedido pela UFPel e principal locação do longa.
“A Equatorial alega que os fios estão no lugar certo, mas não há segurança para pintar ou trabalhar na fachada. É visível que não há distância suficiente dos cabos”, afirmou Gabriela. “Eles sugerem que a gente arque com os custos por fora do orçamento, o que é inviável”, completou.
Nando Ramoz também apontou como a privatização da empresa afetou diretamente a produção cultural. “Eles nos tratam com descaso. Esse é o custo do neoliberalismo: o serviço cai, o preço aumenta e a cultura vira alvo.”
A escolha por Pelotas e a crítica ao apagamento histórico
A trama do filme reflete a trajetória de África, personagem que representa as muitas pessoas negras marginalizadas durante a ditadura. “A ditadura, quase sempre, é contada sob a ótica de homens brancos torturados. Nosso filme é sobre os negros periféricos, as mulheres negras, que também foram reprimidos e silenciados”, disse Gabriela.
A decisão de filmar em Pelotas não foi apenas técnica, mas também simbólica. “Aqui temos o casario antigo, o clima propício, mas principalmente uma cidade que acolhe. É diferente da violência da capital. Pelotas tem essa mistura de passado conservador com uma energia que pulsa por transformação”, destacou Nando.
Além disso, o diretor contou que já conhecia a cidade desde os anos 1980, quando estudou na UFPel, e que mantém uma ligação afetiva e política com o local. “Aqui a gente consegue diálogo direto com quem decide. É outra realidade.”
Casa Oca: de espaço opressor à memória viva da resistência
A Casa Oca, antiga residência na região portuária de Pelotas, será adaptada como cenário principal da produção. Para os realizadores, ocupar esse espaço com arte e memória negra tem um profundo significado.
“Certamente era uma casa de um antigo senhor de escravos. Transformar esse lugar num centro de produção cultural é um gesto político”, disse Nando. A casa hoje pertence à Pró-Reitoria de Ações Afirmativas da UFPel e abriga a Ocupação Coletiva de Arteirxs, sendo frequentada por artistas e visitantes da comunidade.
O diretor e roteirista ainda acrescentou que “A casa está aberta para quem quiser visitar, tomar um café e conhecer o trabalho. O dinheiro é público, e queremos que a população se sinta parte dessa produção.”
História, identidade e projeção nacional
O filme “Vó África” é uma tentativa deliberada de romper com o apagamento histórico. A equipe já havia produzido obras anteriores sobre escravização na região sul, e essa nova narrativa dá continuidade ao processo de resgate e visibilidade.
“A fama de Pelotas era terrível entre os próprios escravizados. Aqui era castigo. As charqueadas mutilavam e matavam. É essa história que queremos expor, para que nunca se repita”, contou Nando.
Ao ser questionada sobre o legado que o filme pretende deixar, Gabriela foi direta: “Quero visibilidade para Pelotas, para nossos artistas, para o Sul. Que os editais e financiamentos públicos também olhem pra cá. E que a gente possa contar nossa história com dignidade.”
Serviço
Nome do evento: Gravações do filme “Vó África – Em busca dos velhos trilhos”
Data e horário: Previsão entre os meses de julho e agosto de 2025
Local: Casa Oca – Rua Dona Mariana, n.º 01, Porto de Pelotas
Descrição: Longa-metragem sobre a trajetória de uma mulher negra no Brasil da ditadura militar, com foco na resistência e na memória afrodescendente.
Acesso e contato: Visitação aberta ao público durante os horários de trabalho da equipe na Casa Oca
*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
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