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Claudionei Ferreira: “Passei pelo manicômio. Sei como é. Por isso luto”

Claudionei Ferreira: “Passei pelo manicômio. Sei como é. Por isso luto”

A frase que dá título a esta matéria resume a urgência e a força da mobilização que toma conta de Pelotas nesta semana. A luta antimanicomial ganha corpo e voz com o evento RAPS (R)EXISTE, que acontece nesta sexta-feira (16), às 14h, no Mercado Central. Com rodas de conversa, manifestações culturais e presença de usuários, profissionais e militantes da saúde mental, a ação reafirma o compromisso com uma sociedade sem manicômios e com cuidado em liberdade.

A proposta do evento foi tema da entrevista no programa Contraponto, da RádioCom, que recebeu Claudionei Ferreira, presidente da Associação de Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Pelotas (AUSSMPE), Larissa Dall’Agnol da Silva, professora da UFPel e integrante do Fórum Gaúcho de Saúde Mental, e Isadora Oliveira Neutzling, enfermeira e militante da Coletiva de Mulheres que Ouvem Vozes. Juntos, eles apresentaram críticas, denúncias e propostas para fortalecer a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no município.

Propostas para uma RAPS forte e efetiva

A entrevista trouxe à tona uma série de propostas para a melhoria da saúde mental pública em Pelotas. Entre elas, os entrevistados defenderam a valorização profissional com planos de carreira e a convocação de concursos públicos, destacando que os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) operam com equipes reduzidas. Larissa Dall’Agnol lembrou que a cidade vive um momento estratégico, com a elaboração do plano municipal de saúde, e que a participação popular é essencial para pressionar por avanços reais.

Além da valorização dos profissionais, o grupo exige condições de trabalho dignas, integração com a atenção básica e ampliação da rede para atender de forma eficiente casos de crise, especialmente entre pessoas em situação de rua. “Queremos uma RAPS robusta, que realmente funcione. Isso passa por investimentos, leitos em hospitais gerais e uma UPA 24h que atenda sofrimento psíquico grave e persistente”, afirmou Larissa.

Outro ponto levantado foi a criação de oportunidades de formação, trabalho e moradia para os usuários da RAPS. A ideia é garantir autonomia, cidadania e inclusão social, reconhecendo o potencial de cada pessoa atendida. “Queremos uma rede que acolha, escute e respeite, não que exclua ou trancafie”, completou Isadora Neutzling.

“O cuidado é em liberdade, não é trancando em manicômio”

Com fala contundente e baseada em sua trajetória pessoal, Claudionei Ferreira emocionou ao relatar experiências de internação. “Passei pelo manicômio três vezes. Sei como funciona. Sei o que é ter os direitos humanos violados. Por isso luto”, afirmou. Para ele, o evento RAPS (R)EXISTE é uma forma de dar visibilidade à causa e pressionar o poder público. “O CAPS funciona, mas precisa de investimento. É muito fácil dizer que não funciona sem olhar para as condições”.

Ferreira ressaltou que a AUSSMPE completará 23 anos de existência em agosto e que segue como referência para outras cidades. Ele também participou da elaboração do protocolo de crise de Pelotas, destacando a necessidade de preparo adequado dos profissionais da rede de emergência, como SAMU e Guarda Municipal. O protocolo hoje está em desuso e as consequências desse abandono atravessam o dia a dia de quem precisa de atendimento na rede de saúde mental da cidade: “Muita gente morreu por falta de abordagem adequada. Escrevemos esse protocolo justamente para evitar isso.”

O ativista defendeu ainda o retorno de projetos como o CAPS na Rua e denunciou o desmonte que a RAPS sofreu nos últimos anos. “Já tivemos CAPS melhores. A cidade precisa retomar esse cuidado de qualidade. E para isso, o controle social é fundamental. A associação não tem vínculo com nenhuma secretaria e por isso pode denunciar o que está errado.”

Hospitais psiquiátricos ainda violam direitos, dizem militantes

A crítica ao modelo hospitalocêntrico esteve no centro da fala da professora Larissa. Ela explicou que, ao contrário dos CAPS, que atendem no território, com vínculos e acompanhamento humanizado, os hospitais psiquiátricos ainda operam com lógicas de exclusão. “A pessoa interna e fica sem ver a família, sem seus pertences, sem saber que medicamentos está tomando. Muitas vezes sai sem nenhuma informação. Isso é boicote à rede.”

Ela acrescentou que muitos hospitais se beneficiam financeiramente da manutenção desse modelo, dificultando a construção de uma rede pública eficaz. “Eles não compartilham informações com os CAPS. Isso dificulta o acompanhamento e favorece a reinternação. É uma lógica de lucro sobre o sofrimento.”

Os entrevistados reforçaram que a lei brasileira, especialmente a legislação gaúcha, prevê o fechamento progressivo de hospitais psiquiátricos e a fiscalização rígida dessas instituições. “Mas quem fiscaliza? Quem cobra transparência dos contratos? Muitas vezes o próprio poder público está fora da lei”, alertou Larissa.

Pré-Conferência: mobilização e propostas para o plano municipal de saúde

Durante a entrevista, Larissa Dall’Agnol também destacou um segundo momento importante na agenda da saúde mental em Pelotas: a Pré-Conferência de Saúde, que ocorrerá no dia 23 de maio, às 14h, no Campus Anglo da UFPel, sala 224. O encontro é um espaço ampliado de participação social e política, no qual serão debatidas propostas para o plano municipal de saúde.

O objetivo da pré-conferência é reunir movimentos sociais, universidade, profissionais da saúde e comunidade em geral para discutir coletivamente quais caminhos devem ser priorizados na gestão pública. “Se não estivermos presentes nesses espaços de controle social, como vamos garantir que tudo isso que defendemos vire política pública?”, questionou Larissa.

Ela também destacou o papel do Fórum Gaúcho de Saúde Mental, que atua nos conselhos estaduais de saúde e drogas, como um articulador de propostas e denúncias. A expectativa é que, a partir da pré-conferência, os movimentos consigam influenciar diretamente as decisões da Conferência Municipal de Saúde, prevista para os próximos meses. “É ali que se decide se teremos uma RAPS de verdade ou mais do mesmo”, afirmou.

A potência da rede e os exemplos que funcionam

Para além das denúncias, os convidados trouxeram exemplos concretos de que é possível cuidar em liberdade com qualidade. Larissa contou o caso de seu afilhado, que sempre foi acompanhado em rede, sem internações, e hoje estuda no IFSul. “A ciência já comprovou a eficácia dessa política. O que falta é vontade política para fortalecê-la.”

O grupo mencionou ainda o caso de Rio Grande, onde os CAPS foram fortalecidos e hoje os profissionais nem sentem falta do hospital psiquiátrico, segundo relatos locais. “Se lá deu certo, aqui também pode dar”, afirmou Larissa. Para isso, é fundamental envolver toda a sociedade no debate. “Não basta só os usuários e trabalhadores entenderem. A população precisa compreender por que o manicômio não é a solução.”

Com oito CAPS em funcionamento, Pelotas ainda tem como referência o Hospital Espírita, o que os militantes consideram um grande entrave. “Queremos serviços substitutivos, que garantam o cuidado no território e evitem a lógica do confinamento. O cuidado precisa ser contínuo, coletivo e acessível”, defenderam.

Serviço

RAPS (R)EXISTE – Ato político-cultural pela Luta Antimanicomial

Data e horário: 16 de maio (quinta-feira), às 14h

Local: Mercado Central de Pelotas

Descrição: Roda de conversa sobre a Luta Antimanicomial, intervenções artísticas e presença de coletivos da saúde mental

Participação: Aberto ao público


Pré-Conferência de Saúde Mental

Data e horário: 23 de maio, às 14h

Local: Campus Anglo da UFPel, sala 224

Descrição: Encontro para discutir propostas para o Plano Municipal de Saúde com movimentos sociais, universidade e comunidade

Gratuito: Sim


*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.


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