Outubro Rosa: sinal de alerta ligado
Contraponto: Gênero, Cidade e Políticas Habitacionais no Brasil
A arquiteta, Doutora e Mestra em Desenvolvimento Regional/Planejamento Urbano (Unisc) Tuize Rovere, recentemente premiada pela CAPES, dedica-se a um trabalho que vai muito além da academia: ela investiga as políticas públicas de habitação e planejamento urbano com foco na escuta ativa das mulheres das comunidades periféricas. Em uma abordagem que desafia o status quo, Tuize propõe uma "ciência implicada", que não apenas observa a realidade, mas gera subsídios concretos para transformá-la.
Em entrevista ao programa Contraponto desta segunda-feira (30), a pesquisadora detalha como sua investigação pode contribuir para o aperfeiçoamento das políticas públicas, especialmente em um país marcado por profundas desigualdades sociais e de gênero.
Ao longo da conversa, Tuize reflete sobre o papel da mídia na formação da opinião pública, a importância da ciência acessível e os desafios de fazer pesquisa em um campo de constante tensão, onde o que está em jogo são os direitos das populações mais vulneráveis. Suas reflexões mostram que a neutralidade é um mito, e que, para avançar, é preciso escutar de verdade quem vive a realidade dos territórios.
Confira a entrevista.
Contraponto: Tuize, o que te atraiu para esse tema tão específico, que junta a experiência de mulheres nas periferias urbanas e as políticas habitacionais brasileiras?
Tuize Rovere: Minha trajetória profissional e acadêmica sempre foi voltada para as políticas públicas habitacionais e para as populações periféricas, especialmente as mais empobrecidas. Trabalhei em prefeituras, universidades e instituições privadas nessa área. Em 2015, tive a oportunidade de acompanhar um assentamento de um conjunto habitacional do Minha Casa Minha Vida, na periferia de uma cidade do interior de Santa Catarina, onde eu morava. Esse foi um momento crucial para mim. O assentamento envolvia famílias, a maioria mulheres com filhos, que viviam de forma irregular no centro da cidade. A remoção delas para esse novo conjunto habitacional me fez perceber algo importante: enquanto os homens continuavam trabalhando e se deslocando, as mulheres ficaram presas em casa. Não havia equipamentos urbanos essenciais por perto, como creches ou escolas. Isso fez com que elas perdessem seus empregos, afastando-se ainda mais do centro da cidade.
Contraponto: A partir dessa experiência, quais foram outras constatações importantes que você fez durante sua pesquisa?
Tuize Rovere: Uma das constatações mais fortes que fiz foi que o direito à cidade não é neutro. As diferentes pessoas que compõem a sociedade – mulheres, pessoas negras, indígenas, pessoas com deficiência, LGBTQIA+ – têm necessidades específicas. O conceito de "direito à cidade" geralmente é pensado de maneira genérica, o que faz com que, na prática, atenda a um grupo hegemônico: homens brancos e em idade produtiva. Isso não reflete a diversidade de experiências e desafios enfrentados por outros grupos.
Contraponto: Você mencionou que as políticas habitacionais muitas vezes não consideram essas especificidades. Como isso se reflete na prática?
Tuize Rovere: Embora as políticas públicas habitacionais exijam a presença de equipamentos urbanos como escolas e creches, na prática, isso raramente acontece. O programa Minha Casa Minha Vida, por exemplo, tem um grande avanço ao priorizar a titularidade feminina das moradias, o que é extremamente relevante, já que a maioria das mães solo e cuidadoras são mulheres. No entanto, essas políticas habitacionais precisam ser pensadas de maneira mais holística. Não basta fornecer habitação; é necessário garantir que o entorno ofereça serviços públicos adequados, como creches, escolas, espaços de lazer, saúde, segurança, entre outros.
Contraponto: Como essa ausência de infraestrutura impacta diretamente as mulheres?
Tuize Rovere: A falta de infraestrutura urbana sobrecarrega ainda mais as mulheres, que já acumulam muitas responsabilidades no cuidado com a casa e a família. Nos conjuntos habitacionais, essas mulheres muitas vezes ficam isoladas e sem acesso a serviços básicos, o que afeta diretamente suas vidas profissionais e pessoais. Em muitos casos, o que vemos é a perpetuação de um ciclo de pobreza e exclusão.
Contraponto: Em sua tese, você também fala sobre redes de cuidado entre as mulheres nas periferias. Como essas redes se formam e qual o impacto delas?
Tuize Rovere: Essas redes são formadas de maneira intuitiva, principalmente em momentos de crise. Durante a pandemia, por exemplo, muitas das famílias com as quais eu trabalhava começaram a passar fome. As mulheres se organizaram para buscar cestas básicas, dividir alimentos e tomar conta dos filhos umas das outras. Essas redes de solidariedade são essenciais para a sobrevivência e a dignidade dessas famílias. Mesmo sem laços de amizade ou parentesco, elas se unem para suprir as necessidades umas das outras.
Contraponto: E como foi a recepção dessas mulheres em serem incluídas na sua pesquisa? Elas sentiram que estavam sendo ouvidas?
Tuize Rovere: A escuta foi um dos aspectos mais importantes da minha pesquisa. Trabalhar com metodologias que priorizam a escuta dessas mulheres foi fundamental, porque o planejamento urbano muitas vezes é feito de maneira rígida, baseado apenas em mapas e estatísticas. Ouvir essas mulheres e suas experiências em relação ao território onde vivem é algo inovador, infelizmente. Isso mostra que é possível desenvolver políticas públicas mais conectadas com a realidade de quem vai vivenciar essas mudanças.
Contraponto: E como foi para você, como pesquisadora, trabalhar com metodologias mais humanizadas em um campo tão técnico e científico?
Tuize Rovere: Não foi fácil. Trabalhar com gênero e metodologias decoloniais e humanizadas ainda é um desafio dentro da academia, especialmente em áreas como o planejamento urbano, que é um campo muito masculino e técnico. Fui questionada diversas vezes se o que eu estava fazendo era ciência. Mas essas metodologias disruptivas são pautadas em uma longa tradição científica. O reconhecimento que recebi pelo meu trabalho, inclusive com prêmios, valida essa abordagem e abre caminho para que mais mulheres pesquisem e sejam ouvidas.
Contraponto: Como você vê o futuro das políticas habitacionais no Brasil, especialmente para as mulheres?
Tuize Rovere: Precisamos urgentemente de políticas habitacionais mais integradas e conectadas com a realidade das pessoas. Não se trata apenas de fornecer uma casa, mas de criar um ambiente urbano que atenda às necessidades de todos, especialmente das mulheres, que são as mais afetadas pela precariedade dos serviços públicos. O futuro das cidades depende de uma escuta ativa e de políticas que realmente promovam a justiça social e de gênero.
Contraponto: Tuize, você mencionou como a sua tese pode ajudar na melhoria das políticas públicas, mas gostaria que você detalhasse um pouco mais. Como seu trabalho pode aprimorar as políticas habitacionais e de planejamento urbano?
Tuize Rovere: Acredito que o papel da pesquisa é fornecer subsídios. Quando eu falo disso, refiro-me a criar bases para que as políticas públicas possam ser revistas e aprimoradas, não apenas na sua formulação, mas, principalmente, na implementação. Minha tese oferece subsídios para novas pesquisas, para gestões públicas, e, claro, para o aperfeiçoamento das políticas habitacionais. O que eu acho fundamental é que a escuta se torne um mecanismo efetivo para as políticas públicas. A escuta das mulheres nas periferias, de quem já vive nesses territórios, pode ser a chave para transformar a forma como as políticas são elaboradas e implementadas. Temos, sim, uma participação popular prevista nas políticas, mas sabemos que, na prática, ela é muitas vezes ineficaz. Como é que uma senhora idosa, com dificuldades de locomoção, que vive há décadas em um bairro afastado, vai participar de uma reunião na prefeitura? Essa escuta precisa ocorrer de outra maneira, diretamente no território. É necessário abrir novos canais, acessíveis e humanizados, para ouvir as pessoas. Acho que esse é o grande diferencial que minha pesquisa pode trazer, ao lado de tantas outras pesquisas que, felizmente, vêm surgindo. É um esforço coletivo de muitas mulheres corajosas que estão abrindo caminho nessa área.
Contraponto: E você comentou sobre o papel da ciência nesse processo. Pode nos contar mais sobre essa "ciência implicada" e o que ela representa?
Tuize Rovere: Sim, eu acredito profundamente em uma ciência implicada, que não se limita à produção de artigos acadêmicos de difícil acesso. A ciência que fazemos precisa gerar subsídios práticos. Escrevi minha tese em primeira pessoa e tentei usar uma linguagem acessível para que ela possa ser lida por qualquer pessoa, e não apenas por acadêmicos. O objetivo é que esse conhecimento seja realmente utilizado para melhorar as políticas públicas. Essa é a essência de uma ciência implicada: ela precisa refletir sobre a realidade e gerar mudanças concretas. É por isso que insisto tanto em gerar subsídios para novas gestões, novas pesquisas e, claro, para aprimorar as políticas existentes. Acho que o mais importante, no caso do planejamento urbano, é exatamente isso: criar um ciclo virtuoso em que as pesquisas alimentam as políticas públicas e vice-versa.
Contraponto: Um dos pontos que você levantou foi a questão da participação popular nas políticas. Como você enxerga essa relação entre a escuta da população e a construção dessas políticas?
Tuize Rovere: A participação popular é essencial, mas, como eu disse, ela muitas vezes não acontece da forma como deveria. Precisamos de um outro tipo de escuta, uma que seja realmente acessível às pessoas que vivem nos territórios. A participação, como está hoje, tende a ser restrita, e as pessoas que mais precisam das políticas não conseguem se fazer ouvir. Por isso, acredito que as políticas habitacionais e urbanas deveriam incorporar novos mecanismos de escuta. Escutar não é só dar a oportunidade de falar, é criar formas para que todas as vozes possam ser ouvidas, especialmente aquelas que são marginalizadas. Precisamos de uma abordagem mais inclusiva, que leve em consideração as realidades das mulheres, das populações negras, das pessoas LGBTQIA+, das pessoas com deficiência, e de outros grupos que muitas vezes ficam à margem das discussões.
Contraponto: Falando em participação, qual o papel da mídia na divulgação dessas pesquisas e na formação da opinião pública?
Tuize Rovere: A mídia tem um papel crucial, tanto no sentido positivo quanto negativo. Existe uma crescente importância dos divulgadores científicos, que traduzem o conhecimento acadêmico para uma linguagem mais acessível e disseminam essas informações nas redes sociais. Esse trabalho é fundamental, porque muitas vezes a academia falha em tornar seus resultados acessíveis ao grande público. Mas também há resistências. Pesquisas que desafiam o status quo, como a minha, muitas vezes são tratadas de forma negativa ou até ridicularizadas. É comum ver as minorias sociais sendo deslegitimadas pela mídia quando começam a tensionar o campo. Esse é um grande desafio: transformar a ciência em algo acessível e, ao mesmo tempo, combater as narrativas que desqualificam o que é novo ou disruptivo.
Contraponto: E sobre a neutralidade na academia, você mencionou que ela não existe. Pode explicar melhor essa ideia?
Tuize Rovere: Neutralidade é um mito. Todos nós carregamos nossas vivências, valores e experiências, e isso se reflete na escolha do que pesquisamos e como pesquisamos. O que temos, na verdade, é um distanciamento científico. A partir do momento em que você está em campo, vivenciando situações muitas vezes dolorosas, como a violência de gênero, é impossível não se afetar de alguma forma. Eu mesma, sendo mãe solo e mulher, tenho muitas experiências que tangenciam o que vejo no campo. Mas a chave está em manter um distanciamento teórico e metodológico. Não deixo de ser uma pesquisadora quando estou no campo. A teoria, a metodologia e o rigor científico são o que garantem que, apesar das afinidades, estou ali como uma pesquisadora e não apenas como uma observadora. O que diferencia uma roda de conversa entre mulheres de uma pesquisa científica é justamente essa preparação e esse embasamento teórico.
Contraponto: Após receber o prêmio da CAPES, quais são seus planos futuros?
Tuize Rovere: Recebi uma bolsa de pós-doutorado junto com o prêmio, e meu desejo é continuar trabalhando na mesma área. Ainda estou decidindo, mas adoraria voltar a trabalhar nas periferias de Pelotas, talvez através de um projeto de pesquisa com a UNISC e a Universidade Federal aqui. Também faço parte do núcleo de pesquisas de gênero no IFRS, onde leciono. Essa é minha área e, enquanto houver espaço para contribuir, estarei aqui, ao lado de outras pesquisadoras, buscando fazer a diferença.
Você confere a entrevista completa em vídeo no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
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