Pelotas decreta emergência em saúde em razão de aumento de casos respiratórios e baixo nível de vacinação
Contraponto: Yoga e autobiografia como ruptura com o autocuidado neoliberal
Em uma sociedade que transforma o cuidado em mercadoria e o bem-estar em mais uma obrigação de desempenho, práticas como o yoga ganham novos significados quando se alinham à escuta, à presença e à reinvenção da experiência. Mais do que uma técnica corporal, o yoga pode ser um espaço de pausa, deslocamento e invenção de si fora das exigências da performance e da produtividade. Foi essa a proposta apresentada por Eliane Silva Gonçalves, instrutora, escritora e pesquisadora, em entrevista à RádioCom.
A conversa foi ao ar no programa Contraponto, no dia 28 de maio. Recém-chegada a Pelotas, Eliane falou sobre sua trajetória, os princípios que norteiam seu trabalho e os fundamentos da sua obra "Yoga, cotidiano, cuidado: notas sobre criatividade e reabilitação". Com um olhar atento à vida comum, ela apresentou o yoga como prática acessível e profundamente conectada às realidades sociais, econômicas e simbólicas de quem o vivencia.
Yoga como prática situada e possível
Durante a entrevista, Eliane relembrou como sua experiência internacional, especialmente na Holanda durante a pandemia, moldou a concepção do livro. Ela contou sobre o impacto emocional e neurofuncional daquele período, que exigiu reinvenções no cuidado. “A urgência do cuidado foi a tônica. Estávamos com medo constante, cortisol altíssimo, longe de casa. Precisávamos de práticas que nos ancorassem no cotidiano”, afirmou.
Eliane destaca que seu trabalho busca "brasileirar" o yoga e torná-lo mais acessível. “Não adianta termos um discurso de autocuidado se ele não reconhece as desigualdades sociais. É preciso olhar para o contexto, para as condições reais das pessoas”, pontuou. Para ela, o yoga pode e deve ser praticado por qualquer pessoa, adaptado às possibilidades físicas, emocionais e sociais de cada uma.
Ela também problematiza a elitização da prática: "Não é um portal mágico onde ninguém se machuca. Yoga é conforto e estabilidade, não performance. Se não está confortável e estável, não está praticando yoga".
Capitalismo, corpo e experiência: cuidado como deslocamento
Uma das reflexões mais potentes da entrevista foi sobre como as exigências do sistema econômico atual atravessam o cotidiano e moldam formas de viver, sentir e se perceber. Eliane apontou que a lógica produtivista atinge até mesmo as práticas de cuidado: “A gente quer se cuidar, mas logo aparece uma voz dizendo: ‘vai trabalhar’. É o capital falando pela gente”.
Ela propõe outro caminho: perceber o corpo como um espaço de pausa, criação e resistência silenciosa. “Como alguém pode cuidar de si se está sendo explorado, exausto, precarizado? O cuidado, para fazer sentido, precisa levar em conta o mundo em que a gente vive.”
Na formação que propõe, Eliane afirma que a primeira adaptação do yoga é o acesso: “Antes de ajustar a postura, é preciso garantir que a pessoa consiga estar ali. O cuidado começa por reconhecer que a exclusão é uma prática cotidiana. Cuidar é disputar espaços. É dizer: esse corpo tem valor, mesmo quando não produz.”
Entre a promessa do coach e o compromisso com o mal-estar
Eliane também refletiu sobre a diferença entre práticas esvaziadas de compromisso e abordagens enraizadas na escuta real do corpo e da vida. Para ela, há uma grande diferença entre o discurso pronto do coach e o trabalho de um instrutor sério. “O coach evita o mal-estar. Ele quer te tirar dali rapidamente, como se fosse possível passar por cima da dor. Mas o yoga exige presença. Exige atravessar. É nesse processo que algo se transforma.”
Ela defende que reconhecer o mal-estar como parte da experiência é fundamental. Há desconfortos que precisam ser sentidos, nomeados, escutados. “O yoga não é um convite ao alívio imediato, mas à escuta do que o corpo está dizendo, mesmo quando o que ele diz é ‘não’.”
Para Eliane, isso também envolve ressignificar a prática: “Se eu disser 'observe seu corpo agora', todo mundo pode. Não é preciso saber o nome da postura em sânscrito. É preciso se perguntar: onde estou, o que sinto, que espaço ocupo?”. Essa simplicidade acessível, para ela, é o verdadeiro ponto de partida.
O livro como dispositivo autobiográfico e pedagógico
A obra "Yoga, cotidiano, cuidado" surge como uma espécie de "caixa de ferramentas" para quem deseja incorporar o yoga de maneira reflexiva e situada. Escrito com base em experiências vividas e práticas profissionais, o livro é estruturado em capítulos breves, com ilustrações, exercícios e provocações que estimulam a escrita de si.
Eliane compartilha que o método autobiográfico é o cerne da sua pesquisa no doutorado em Educação na UFPel. "Falar de si não é um ato narcísico, é uma prática de reconhecimento e escuta. É revolucionário reconhecer o valor da própria história, especialmente das histórias simples, das pessoas infames, como diria Foucault."
O livro também traz colaborações importantes, como a da escritora Carol Milters, com quem Eliane dividiu práticas durante dois anos. Juntas, desenvolveram uma metodologia de yoga autobiográfico, que está na base da formação que Eliane está promovendo.
Formação: yoga e escrita como caminhos de presença
A partir das experiências compartilhadas no livro, Eliane criou a formação online "(Auto)biografia de uma Yogue: fundamentos e aplicações do Yoga para o ensino e a prática cotidiana". Os encontros serão realizados às quintas-feiras de junho e julho, com opções pela manhã ou à noite.
A proposta é oferecer um mergulho teórico e prático em temas como criatividade, cuidado, espiritualidade e saúde mental, com enfoque em práticas acessíveis e adaptadas. “A primeira adaptação do yoga é o acesso. Depois, adaptamos as posturas, os exercícios. Mas o primeiro passo é garantir que todo mundo possa participar”, explicou Eliane.
A formação é voltada para iniciantes, praticantes, educadores, terapeutas e profissionais da saúde. Mais do que uma aula de yoga, o curso se propõe como espaço de troca, escuta e formação humana.
Cuidado e criatividade como formas de presença
Eliane ressaltou que o cuidado de si não pode ser descolado das estruturas sociais. "Não adianta pedir que o indivíduo se cuide se a sociedade o adoece. O cuidado precisa ser coletivo, reconhecendo as violências, desigualdades e ausências que nos atravessam."
Nesse sentido, ela defende que a criatividade é uma força vital e necessária para imaginar saídas. Inspirada por autores como Walter Benjamin, Eliane vê no yoga um campo fértil de reinvenção da experiência. “Criatividade não é reproduzir, é criar. E criar exige espaço, exige escuta, exige corpo."
Ao final, a instrutora reforça que o yoga pode ser simples: um momento de respiração consciente, um gesto de escuta, uma pausa para tomar seu espaço. “É uma prática revolucionária porque nos reconecta com o que é essencial. E o essencial, muitas vezes, é só parar, respirar e se escutar."
Serviço
Formação - (Auto)biografia de uma Yogue: fundamentos e aplicações do Yoga para o ensino e a prática cotidiana
Quando: Todas as quintas-feiras de junho e julho de 2025
Horários: 7h (manhã) ou 18h (noite)
Formato: Online e ao vivo
Contato: WhatsApp (51) 99115-1657
Instagram: @espacofisioter
Evento com possibilidade de bolsas sociais
Livro - Yoga, cotidiano, cuidado: notas sobre criatividade e reabilitação
Autora: Eliane Silva Gonçalves
Onde encontrar: Amazon
Descrição: Reflexões e práticas sobre yoga, saúde mental e criatividade, com exercícios adaptados e linguagem acessível
*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
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