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Ditadura, democracia e o dever de lembrar
Em um Brasil onde discursos autoritários ganham espaço e o passado recente é frequentemente distorcido, iniciativas que recuperam a memória histórica tornam-se ainda mais urgentes. Essa é a proposta do seminário “Ditadura e Democracia no Brasil: conhecer o passado, pensar o presente”, que será realizado entre os dias 10 e 12 de julho em Pelotas. O evento promove uma imersão crítica nos impactos do regime militar e nos riscos enfrentados atualmente pela democracia.
A iniciativa foi tema da entrevista concedida pela professora de História da UFPel, Alessandra Gasparotto, ao programa Contraponto, da RádioCom. Gasparotto é uma das organizadoras do seminário, promovido pelo Instituto Mário Alves (IMA) em parceria com a UFPel e diversos coletivos e entidades locais. Durante a conversa, a professora destacou os perigos do negacionismo histórico e os caminhos possíveis para fortalecer a consciência democrática no país.
Quando a memória coletiva encontra resistência
Para a professora Alessandra Gasparotto, o seminário surge como resposta direta à crescente banalização da violência ditatorial. “Há setores que tentam reescrever o passado, atuando contra os direitos humanos e alimentando discursos que relativizam a ditadura”, afirmou. Segundo ela, é essencial compreender como o autoritarismo de ontem ainda molda instituições, práticas e mentalidades no presente.
A proposta do evento é articular passado e presente, mostrando como os traços do regime militar ainda influenciam a cultura política, o judiciário e até mesmo os discursos cotidianos. A professora ressaltou que a democracia brasileira foi sistematicamente atacada nos últimos anos — com destaque para o golpe parlamentar de 2016 e a tentativa de golpe em 2023. “A democracia perdeu valor social. Não é mais vista como um bem inegociável por grande parte da população”, alertou.
Gasparotto também abordou o papel das mídias digitais e da comunicação hegemônica na construção de narrativas distorcidas. A ascensão de grupos como o Brasil Paralelo — que produzem conteúdos negacionistas com grande alcance — é vista como parte de uma estratégia deliberada de manipulação histórica. “Esses discursos não surgem espontaneamente. Eles são financiados e organizados por grupos com interesses ideológicos claros”, pontuou.
A escuta dos sobreviventes e o poder da história oral
Um dos destaques da programação é a presença de testemunhos de sobreviventes da repressão. Para a professora, valorizar essas vozes é uma forma de resistência e de educação política. “Eles nos ensinam sobre a violência do Estado, mas também sobre afeto, luta e sobrevivência. Ouvir essas histórias é essencial para qualquer projeto de democracia real”, disse.
Alessandra explicou que, embora muitos dos depoentes estejam engajados há décadas nessa luta por memória e justiça, ainda existem dificuldades em convencer algumas pessoas a falarem. O estigma, especialmente em cidades do interior, e o medo reavivado durante o governo Bolsonaro, têm silenciado muitas dessas histórias. No entanto, ela ressalta que há um novo movimento surgindo: o de filhos e netos de perseguidos políticos que também passaram a se engajar nessa luta por memória.
Entre os convidados do seminário está Leonardo Alves, neto de Mário Alves, militante brutalmente assassinado durante a ditadura. Ele integra o grupo “Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça” e representará as gerações que herdaram o trauma da repressão, mas também a missão de manter viva essa história.
O dever de lembrar: memória como resistência
Lembrar é um ato político. Essa foi uma das mensagens mais fortes transmitidas pela professora Alessandra Gasparotto ao longo da entrevista. Segundo ela, a memória da ditadura não é apenas um exercício de rememoração, mas uma forma ativa de resistência diante dos discursos negacionistas que tentam reescrever o passado e apagar as marcas da violência estatal. “Conhecimento e opinião são coisas muito diferentes”, afirmou, ao destacar a importância de um trabalho histórico fundamentado em evidências, fontes e metodologia científica.
O “dever de lembrar”, conceito muito presente nas falas da professora, refere-se ao compromisso ético de escutar, registrar e dar visibilidade às memórias das vítimas da repressão. Para além de relatos emocionais, esses testemunhos são acompanhados de documentação histórica e revelam não apenas a dor vivida, mas também a força da resistência. “Esses sobreviventes continuam lutando quando aceitam contar suas histórias”, disse Gasparotto, defendendo que ouvir essas narrativas é essencial para que novas gerações compreendam o que foi o regime militar no Brasil.
Esse dever não é apenas individual — ele é coletivo. O seminário, segundo a professora, é fruto de décadas de mobilização de vítimas, familiares e militantes, que desde os anos 1970 vêm cobrando políticas de memória, verdade e justiça. A criação de entidades, a atuação em comissões e a participação em espaços públicos têm sido fundamentais para manter viva a lembrança desse passado traumático.
Ao promover o encontro entre história oral, documentos oficiais e espaços de escuta pública, o seminário busca combater o esquecimento e fortalecer a consciência crítica. Em tempos de desinformação e ataque à ciência, lembrar é resistir. “A história não acabou durante a ditadura e não vai acabar agora. Temos um papel nesse processo, e ele começa por reconhecer o que vivemos e quem lutou para que estivéssemos aqui hoje”, concluiu.
Pelotas sob a sombra da repressão: o roteiro dos lugares de memória
O seminário também propõe uma atividade de campo: um roteiro guiado por locais da cidade marcados pela repressão política. A caminhada será realizada no sábado, 12 de julho, com saída às 9h do Instituto Mário Alves. A proposta é transformar a paisagem urbana em espaço de memória, revelando as histórias ocultas nos espaços cotidianos.
O percurso inclui a Faculdade de Direito da UFPel, a Praça Coronel Pedro Osório, a Biblioteca Pública — onde funcionava a antiga Câmara de Vereadores —, o Museu do Doce (que abrigou o comando militar da cidade) e a Casa do Trabalhador, local de resistência durante o golpe de 64. “A cidade fala e silencia sobre sua história. Queremos provocar esse olhar mais atento”, explicou Gasparotto.
Segundo a professora, o roteiro busca não apenas narrar os fatos, mas também sensibilizar os participantes. A proposta é caminhar pela cidade de forma leve e acessível, com café coletivo e ambiente acolhedor, para incentivar a participação popular. “A saída de campo tem partes tristes, mas também tem partes divertidas. Queremos que todos se sintam convidados”, convidou.
Um seminário construído a muitas mãos
A programação inclui minicursos, mesas-redondas e atividades culturais, com participação de pesquisadores, militantes e sobreviventes da ditadura. Um dos minicursos discutirá o papel da comunicação na construção da hegemonia, abordando desde a era da Rede Globo até o domínio atual das redes sociais. Outro será dedicado às juventudes e aos movimentos estudantis.
As mesas de debate vão tratar da memória da ditadura e dos desafios atuais impostos pela ascensão da extrema-direita no Brasil e no mundo. Os convidados incluem nomes como o deputado estadual Matheus Gomes, a historiadora Ananda Simões Fernandes e o pesquisador Anderson Moreira. O evento é gratuito e aberto a todos, com certificação de 20 horas para quem realizar a inscrição.
Gasparotto destacou ainda a campanha solidária que será realizada durante os três dias de seminário. Quem puder contribuir, pode levar alimentos não perecíveis, que serão encaminhados para entidades assistenciais. “É uma forma de refletir e agir coletivamente, porque pensar o presente também é cuidar de quem está ao nosso lado”, finalizou.
Serviço
Evento: Seminário “Ditadura e Democracia no Brasil: conhecer o passado, pensar o presente”
Datas: 10, 11 e 12 de julho de 2025
Local: CEHUS/UFPel – Rua Alberto Rosa, 117, Pelotas/RS
Entrada: Gratuita
Certificação: 20h (mediante inscrição via formulário online)
Visita guiada: Sábado, 12 de julho, às 9h – saída do Instituto Mário Alves (Rua Alberto Rosa, 162)
Campanha solidária: Doação de alimentos não perecíveis para entidades locais
Mais informações: Site do IMA
*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
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