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“Eu inventei um trabalho pra mim — e deu certo”

“Eu inventei um trabalho pra mim — e deu certo”

Som, afeto e atitude: como uma mulher preta, lésbica e sem disco nenhum virou um dos maiores nomes da cultura pelotense

No estúdio do Contraponto, Helô entrou sendo anunciada como o que de fato é: rainha das tardes da RádioCom e ícone cultural incontornável de Pelotas. Aos 64 anos de idade e com 40 de carreira, ela chegou com a voz já conhecida por quem acompanha a 104.5 FM — firme, engraçada, emotiva, cheia de memória e sem papas na língua. A entrevista, no ar da RádioCom, foi mais do que um bate-papo: foi uma aula de trajetória, de identidade e de coerência. Helô não foge do que é. E, justamente por isso, move tantas pessoas há tanto tempo.

A conversa percorreu as décadas de sua atuação nas pistas, nas ondas do rádio, nos bastidores e nos palcos da cidade. E não foi uma trajetória fácil. “Quando eu comecei, não tinha mulher DJ. Muito menos mulher preta, muito menos sapatão.” A afirmação foi feita sem amargura, mas com a nitidez de quem sempre soube o lugar que precisou conquistar — e o quanto foi necessário insistir para ocupá-lo.

Ela lembrou de um tempo em que as coisas eram mais difíceis, e também celebrou os vínculos que construiu: amigos, vizinhos, festas na rua, vinis guardados como tesouros. “Meus primeiros discos nem eram meus, eu pegava emprestado. Eu não tinha nada. Era só vontade.” E dessa vontade nasceu uma carreira que rompeu com o que parecia dado. Inventou um lugar para si onde ninguém havia colocado uma mulher como ela.

Helô é rara porque ela é fiel a si mesma, em todos os espaços. “Eu sou Helô. Não sou DJ Helô. Eu sou Eloísa Helena Ferreira Duarte.” E essa frase define muito do que a move: não se esconder, não se dobrar, não posar de algo que não é. O título de patrimônio cultural da cidade ela recebeu — mas prefere ser reconhecida pelos abraços que dá nas festas, pelas músicas que toca com intenção e pela liberdade que inspira.

“Nunca baixei música. Sempre paguei pelo som que eu toco.”

Na contramão da lógica apressada do streaming, Helô é uma guardadora de acervos. Sua relação com a música passa pelo objeto, pelo cuidado, pelo tempo. “Eu comprei todos os discos que toco. Nunca baixei música.” Isso não é só uma escolha técnica — é um posicionamento ético. Para ela, o artista precisa ser remunerado. E ela faz questão de pagar.

Mais do que colecionadora, é uma curadora exigente. Se a música carrega racismo, homofobia ou misoginia, não entra na playlist — mesmo que seja um clássico. “O samba é lindo, mas muito machista.” Ao mesmo tempo, ela não entra na onda do cancelamento sem reflexão. Guardou discos de Martinho da Vila, Chico Buarque, Caetano. Mas não deixa de problematizar as letras, os contextos, as incoerências. Lê, estuda, pensa e decide.

Essa postura molda não só o que ela toca, mas o sentido que imprime ao tocar. “Não adianta tu vir me pedir uma música machista. Eu não vou tocar. Pode ser meu amigo, pode ameaçar ir embora. Eu digo: vai mesmo.” E o público que acompanha Helô já entendeu que seu diferencial está justamente aí: em fazer da pista um espaço seguro — e politicamente consciente.

Ela também valoriza artistas contemporâneos que renovam a música brasileira com discurso e poesia: Luedji Luna, Liniker, Chico Chico. Mas não por modismo — e sim por compromisso. Cada set da Helô é uma declaração de princípios. Por isso ela resiste, por isso ela permanece, por isso tanta gente a ama. Porque quando ela está no comando, o som não é só trilha — é direção.

“Respeito. Essa é a palavra. E todo mundo sabe como é nas minhas festas.”

Não existe Helô sem festa. Mas também não existe festa com ela sem um código ético bem claro: “Pode tudo, menos desrespeito.” Desde que começou a produzir suas próprias festas, ela fez questão de criar ambientes onde casais gays possam dançar de mãos dadas, onde pessoas negras e trans se sintam à vontade, onde ninguém seja julgado por como ama, dança ou se veste.

Há três anos, ela implementou uma lista gratuita de ingressos para pessoas negras e trans. Uma medida simples, mas com potência simbólica gigante. “Tem gente que não tem grana pro ingresso, ou que se tem, não tem pra bebida. E eu quero essas pessoas lá.” E não aceita que esse espaço seja desvirtuado. “Professor universitário querendo entrar pela lista? Me poupe.” A Simone, ex-companheira e sua produtora, é quem segura a onda: só entra quem está dentro das regras.

Essa firmeza não é dureza — é cuidado. E o público sente. “As pessoas fazem fila pra me abraçar nas festas. E eu abraço todo mundo.” Às vezes, confessa, até se perde no set: “Tô velha, esqueço qual era a próxima música porque me emociono com as histórias que as pessoas contam.” Mas é exatamente esse tipo de vínculo que torna suas festas únicas: não são só bailes, são reencontros com a dignidade.

Ela não romantiza as dores. Já foi agredida com uma suástica na cara, já foi xingada, já ouviu que “seu som era uma merda”. E seguiu. “Tudo passa, menos o cobrador e o motorista”, diz. Mas o que ficou, o que nunca passou, é o público que reconhece nela um porto, uma referência, um espelho. E é por isso que sua festa neste sábado (16) será muito mais do que uma comemoração — será um manifesto dançante.

“Me formei com 56 anos. Não foi pros outros. Foi pra mim.”

Além de DJ e comunicadora, Helô também é formada em Produção Fonográfica — e essa conquista veio depois dos 50 anos. “Fiquei 30 anos sem estudar por causa da noite. Aí voltei, fiz EJA [Educação de Jovens e Adultos], fiz vestibular, passei e me formei.” E, como tudo que ela faz, não foi pra provar nada a ninguém. “Me formei pra mim.”

Mesmo assim, a inspiração veio como efeito colateral inevitável. “Levei gente com mais de 50 anos pra universidade só por ter contado minha história.” Porque quando uma mulher negra, lésbica, periférica e artista se move com dignidade, ela não move só a si — ela puxa o mundo junto.

Helô não tem filhos biológicos. Mas tem muitos filhos de afeto. Filhos de amigos, ouvintes, gente que cresceu ouvindo sua música. Gente que aprendeu com ela que não precisa baixar a cabeça, que pode ocupar, que pode dizer não, que pode viver com firmeza e ternura ao mesmo tempo.

Essa é a Helô que o Contraponto entrevistou: inteira, transparente, emocionante. Uma figura que não separa sua história da história da cidade. Que já foi renegada por causa da sexualidade, da cor, do som. E que, mesmo assim, resistiu com estilo, com som, com afeto — e com muita dança.


Serviço

Festa 64/40 – DJ Helô

Data: Sábado, 16 de agosto

Horário: A partir das 23h30

Local: CCS Eventos – Pelotas/RS

Atrações: DJ Helô, DJ Lola, flash tattoo, chapelaria, espaço ao ar livre

Ingressos à venda: Ticketpel (sujeito à lotação)


*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.


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