"Maya", novo romance de Hilda Simões Lopes, reconstrói a força das vivandeiras e mulheres esquecidas da história
"Maya", novo romance de Hilda Simões Lopes, reconstrói a força das vivandeiras e mulheres esquecidas da história
Mulheres à margem da história oficial, silenciadas por séculos, voltam à cena através da literatura. É isso que propõe "Maya", novo romance histórico da escritora pelotense Hilda Simões Lopes, que será lançado nesta sexta-feira, 15 de agosto, no Instituto Simões Lopes Neto. A obra joga luz sobre figuras como as vivandeiras do século XIX — mulheres que acompanharam tropas em guerras do Cone Sul —, costurando ancestralidade, resistência feminina e espiritualidade em uma narrativa sensível e contundente.
Em entrevista ao programa Contraponto, da RádioCom Pelotas, Hilda compartilhou bastidores da escrita e do processo de pesquisa que deram vida à protagonista Maya. Entre arquivos históricos e inspiração ficcional, a autora constrói uma saga que desafia o apagamento histórico de mulheres pobres, negras, indígenas e caboclas. "Maya é uma personagem que nasce da ausência. Ela representa as que foram esquecidas, mas que viveram com bravura", afirma.
Vivandeiras: resistência, miséria e coragem em meio às guerras
A base histórica de "Maya" é pouco conhecida: as vivandeiras. Eram mulheres que, movidas muitas vezes pela miséria, acompanhavam tropas militares em batalhas no Brasil e países vizinhos. Sem qualquer remuneração ou reconhecimento oficial, desempenhavam múltiplos papéis: cozinhavam, cuidavam dos feridos, realizavam partos, dançavam, cantavam, enterravam os mortos e até pegavam em armas quando necessário.
"Essas mulheres existiram, mas foram varridas da memória oficial. Não há uma praça, uma rua, uma escola com seus nomes", lamenta Hilda. Para sobreviver, muitas saqueavam corpos após as batalhas, extraindo dentes de ouro, fivelas, moedas. Sua presença era ao mesmo tempo temida e indispensável. Havia até leis proibindo sua presença nas tropas, sob o argumento de que disseminavam doenças e desordem — mas elas continuavam a seguir os batalhões, à margem e à força.
No romance, a autora dá nome e rosto a essas mulheres, que até hoje não figuram nos livros escolares. Ao construir a personagem Maya, Hilda não apenas cria uma história, mas reivindica um espaço de memória para milhares de brasileiras anônimas que viveram e morreram em silêncio.
A saga de Maya: ficção com raízes profundas na história
Maya, a protagonista, é filha de uma mulher escravizada. Aos 14 anos, faminta e à beira da morte, é acolhida por um grupo de vivandeiras. A partir desse encontro, inicia sua jornada entre batalhas, sobrevivência e descobertas. Embora a personagem seja fictícia, seu entorno histórico é fiel: guerras, locais, personagens e contextos foram exaustivamente pesquisados pela autora.
A narrativa, que inicialmente seria breve, se transformou em mais de 300 páginas, escritas ao longo de um ano e meio. "Queria dar conta da dimensão dessas mulheres, da brutalidade e também da beleza com que elas enfrentavam a vida", diz Hilda. A construção da história partiu de sugestões de amigos da autora, que a provocaram: faltava um romance sobre as vivandeiras no Rio Grande do Sul - e ele deveria ser escrito por uma mulher.
Para compor o universo da personagem, Hilda buscou fontes no Uruguai e na Argentina, onde essas mulheres são conhecidas como "chinas quarteleiras". No Brasil, a escassez de registros exigiu da autora um trabalho criativo de reconstrução, sem abrir mão da veracidade histórica. Maya é, portanto, uma ficção que traduz uma verdade maior: a resistência invisível das mulheres pobres e racializadas na história do Brasil.
Porto Alegre e as feministas do século XIX: quando o Sul foi vanguarda
Ao ser resgatada ferida de uma batalha, Maya é levada a Porto Alegre, onde começa a segunda fase de sua trajetória. Lá, entra em contato com ideias novas, convive com mulheres letradas e se aproxima dos primeiros movimentos feministas do país. Esse contexto é outro ponto alto do livro: a autora revela uma história pouco contada sobre o surgimento do feminismo no sul do Brasil.
"Porto Alegre, no século XIX, foi um centro de ideias libertárias. As filhas de militares estrangeiros que vieram defender o território estudavam, liam autores da Revolução Francesa e questionavam a opressão de gênero", conta Hilda.
A crítica ao patriarcado e às leis injustas permeia toda a narrativa. As personagens enfrentam um mundo onde a mulher não podia votar, não tinha direito ao divórcio, perdia seus bens ao casar. Maya, ainda como empregada doméstica, passa a viver esse processo de tomada de consciência e protagonismo, influenciada por essas mulheres visionárias.
Espiritualidade, ancestralidade e mulheres que sapateiam sobre o machismo
Maya também é um romance sobre ancestralidade. A protagonista, marcada pela herança africana e indígena, carrega saberes que vão além da razão e da lógica ocidental. A espiritualidade se manifesta em diálogos com entidades, práticas de cura, conexão com a natureza e memórias que atravessam gerações.
Hilda define suas personagens como mulheres que "sapateiam sobre o machismo", mesmo antes de existir a palavra feminismo. A linguagem do romance reflete isso: sensível, poética, lírica, sem abrir mão da força. A resistência não aparece apenas na luta física, mas também no amor, no cuidado, na fé, na solidariedade entre mulheres.
A autora também propõe pontes entre passado e presente, usando Maya como símbolo de continuidade. "É um livro que fala de ontem, mas também de hoje. As vivandeiras continuam existindo de outras formas. As lutas por reconhecimento, dignidade e liberdade continuam as mesmas."
Pelotas como berço e destino: raízes da autora e da obra
Hilda Simões Lopes cresceu em Pelotas, na mesma casa de charqueada onde viveu João Simões Lopes Neto. A cidade, com suas memórias, contradições e potências, está entranhada na escrita da autora. Em "Maya", embora grande parte da trama se passe fora de Pelotas, o Sul do Brasil está presente como território simbólico e afetivo.
A autora tem outros romances publicados, mas afirma que "Maya" é sua obra mais completa, amadurecida e politicamente consciente. Professora universitária, socióloga e pesquisadora social, ela alia rigor histórico com liberdade literária. "Pelotas vive dentro de mim. E esse livro é um retorno às origens, mas também um grito para o futuro."
Após o lançamento em Porto Alegre, que reuniu dezenas de leitores e críticas positivas, Hilda escolheu sua cidade natal para apresentar a obra em um encontro especial. A programação inclui conversa com a historiadora Lorena Gill, além de sessão de autógrafos.
Serviço
Lançamento do livro "Maya", de Hilda Simões Lopes
Data: sexta-feira, 15 de agosto
Horário: 18h – conversa com a Dra. Lorena Gill, seguida de sessão de autógrafos
Local: Instituto Simões Lopes Neto – Rua Dom Pedro II, 810 – Pelotas/RS
Editora: Libretos
Páginas: 312
Preço: R$ 80
*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
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