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O livro é um “perigoso instrumento civilizatório”, disse o patrono da 50ª Feira do Livro de Pelotas

O livro é um “perigoso instrumento civilizatório”, disse o patrono da 50ª Feira do Livro de Pelotas

O livro é um “perigoso instrumento civilizatório”, disse o professor, escritor e patrono José Luís Marasco Cavalheiro Leite, em seu discurso na abertura oficial da 50ª Feira do Livro de Pelotas. As lâmpadas da tenda cultural iluminavam a plateia lotada, mas ainda era possível ver um azul no céu no início da noite de 31 de outubro, data expandida pela anglosfera como comemoração do Halloween, ou Dia das Bruxas, na língua de Machado de Assis. Na mesma passagem do discurso, o professor expressou: “tão característico de ideologias totalitárias”, são, “momentos de agressão ao pensamento, em tantos casos de ‘queimas de livros’, que a história registra”.

A passagem soou compatível com a data, com uma quedinha meio gótica, especialmente quando o professor citou o poeta alemão Heinrich Heine: “E – sabemos – depois de queimarem-se livros, queimam-se corpos”. O professor, no entanto, fazia uma reflexão histórico-social, apontando exemplos de civilizações que reprimiram o conhecimento e o fogo nos livros chegou às vias de fato. Atualmente, não se viu a imagem de um livro pegando fogo, mas o “culto à ignorância” proporcionou um episódio ruidoso em 2024, com a censura ao livro O Avesso da Pele, do escritor porto-alegrense Jeferson Tenório. Segundo Marasco: “Vivemos, sim, um tempo de incertezas”.

Porém, o discurso também foi uma ode ao prazer da leitura. “O livro, o personagem principal deste evento, penetrou profundamente em minha vida. Vivi a vida de tantos… em tantos lugares… em tantos tempos!”, disse o patrono, que ainda contou ter sido aluno, no Colégio Pelotense, do professor Aldyr Garcia Schlee, um entusiasta da literatura que sonhava em fazer de seus alunos grandes escritores.

Nessa quinquagésima edição da Feira do Livro de Pelotas, que tem como tema “Conectando Gerações, Construindo Futuros’’, o orador convidado foi o filho do patrono, o governador do estado do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. O governador agradeceu por ter aprendido com o pai o gosto pela leitura e a importância do conhecimento para a construção de uma sociedade melhor. E, com o desejo semelhante ao do professor Schlee, com quem provavelmente conviveu bastante, o governador finalizou dizendo: “Que seja uma feira do livro para formação de leitores. Mas que seja uma feira que forme novos escritores’’. 


Leia na íntegra o discurso do patrono José Luís Marasco Cavalheiro Leite:

Vivi os dias que antecederam este ato, com imensa ansiedade.

Sentia, em falas de amigos e de conhecidos, uma verdadeira expectativa sobre como seria minha manifestação, no momento da inauguração da 50ª. FEIRA DO LIVRO DE PELOTAS. Poderia ser – e possivelmente fosse – apenas um gesto de simpatia. Desconfiando, porém, que pudesse ser mais do que isso – que fosse autêntico e inusitado apreço por minha palavra – passei a viver esses dias mais recentes com a preocupação de estar à altura – ou à maior proximidade possível – da fala de tantos ilustrados patronos de outras edições deste evento.

A primeira Feira do Livro contou com a palavra do Dr. Mozart Russomano.

Simulei, então, em diversos momentos, várias e diferentes abordagens.

O mote escolhido para a 50ª.FEIRA DO LIVRO DE PELOTAS, que explica a homenagem que me foi feita, como Patrono ao lado do Eduardo – “Conectando gerações, construindo o futuro” – pareceu-me, ao final, o melhor tema para minha manifestação.

Por professor que fui durante quase toda minha vida, na área das Ciências Sociais e no Direito, estive sempre fazendo a traditio, a entrega do passado às novas gerações para tentar explicar-lhes o presente e iluminar o futuro.

Permitam-me lembrar, neste momento, com muita emoção, que, desde há algum tempo, PROFESSOR E PAI, fiz uma especial entrega à polis. Entreguei à vida pública um cidadão de caráter reto e de insuspeitadas virtudes cívicas, o meu filho Eduardo, cuja formação tenho o orgulho de haver compartilhado com a Lica.

Desde há algum tempo, porém, deixei de arriscar sobre o futuro e já não tenho muitas certezas sobre o passado.

Atribuiu-se ao ex-ministro Pedro Malan esta frase-pérola: “No Brasil, até o passado é incerto”.

Vivemos, sim, um tempo de incertezas nos dias de hoje, em que, inegavelmente, cresce o que me permito designar como um envolvente “culto à ignorância”, tão comum e tão característico de ideologias totalitárias, que costumam fazer do livro (este “perigoso instrumento civilizatório”!) a sua primeira vítima, como é revelado em tantos momentos de agressão ao pensamento, em tantos casos de “queimas de livros”, que a história registra.

E – sabemos – depois de queimarem-se livros, queimam-se pessoas, como advertiu o poeta alemão Heinrich Heine.

Não foi senão para impor o credo que mais se afeiçoava a seus interesses de dominação, que Constantino, após o Concílio de Niceia, mandou queimar os textos que defendiam a versão do Cristianismo, de Ário.

Foi em razão do obscurantismo religioso que, em Granada, durante a Inquisição Espanhola, foram queimados mais de cinco mil manuscritos árabes.

Na busca da realização de um sonho fácil de sonhar, dos anos de 1920 em diante, a experiência socialista da União Soviética procedeu à queima de livros que expressavam o “pensamento decadente do ocidente”.

Temos, ainda, a lembrança próxima de quando Joseph Goebbels – evocado (não sem surpresa) recentemente por um ex-secretário nacional da cultura –, em 10 de maio de 1933, deu início simbolicamente ao expurgo da inteligência que não servisse aos propósitos totalitários do regime nazista.

Ouviram-se, então – registraram testemunhas presentes ao ato –, frases como estas – “Contra a decadência e a deterioração moral! Pela disciplina e decência da família e do Estado, entrego à chama os escritos de Heinrich Mann, Ernst Glaeser e Erich Kästner, Stefan Zweig, Thomas Mann, Sigmund Freud, Erich Maria Remarque…”

*

A riqueza maior dos livros está em ser o abrigo da palavra, expressão maior da exclusiva jornada de racionalidade da espécie humana sobre a terra.

Lembro-me de que, em sala de aula, alguns alunos, reclamavam de que minhas lições traziam-lhes palavras novas, pouco usadas e, assim, não bem entendidas, de pronto.

Usava de responder-lhes, então, que a palavra, como menor unidade semântica de um idioma, é a expressão de ideias, de pensamentos e de sentimentos e, assim, quem conhece mais palavras, melhor traduz seus sentimentos, elabora com maior facilidade seu pensamento e pode produzir mais e novas ideias. Dizia-lhes, também, que o maior manancial de palavras era encontrado nos livros, na boa literatura.

Por isso, eventos dedicados ao LIVRO, como este que agora é inaugurado, além do aspecto festivo, vejo-os como consagrações à inteligência e à liberdade.

Fui assíduo frequentador das FEIRAS DO LIVRO, desde sua primeira edição. Era, então, um adolescente que, como os do meus tempos, “cometia”, já, sentidas, amarguradas e inconsoláveis poesias. Forrei-me, depois, para minha “Lira dos Vinte Anos”, dos livros da Editora do Autor, que alcançou às prateleiras dos jovens românticos como eu, a poesia de Cecília Meireles (Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno, a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: mais nada), Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Manoel Bandeira, Paulo Mendes Campos (não vou mais sofrer sob as armações metálicas do mundo, como fiz outrora, quando ainda me perturbava a rosa) .

Contava, a este tempo, no meu querido Colégio Pelotense, com as aulas do inesquecível professor Aldyr Garcia Schlee, que, entusiasta da literatura e da juventude, generosamente sonhava em fazer de seus alunos grandes escritores.

Tenho certeza de haver ele logrado êxito com um, ao menos: o MÁRIO OSÓRIO MAGALHÃES. (“jogava a tal felicidade de enxurrada à nossa porta e a gente nem sabia o que fazer com ela. Provavelmente ela por muitas noites pernoitou lá fora e nem sequer abrimos a janela”).

O livro, o personagem principal deste evento, penetrou profundamente em minha vida.

Através de suas páginas, apaixonei-me por personagens, aprofundei-me em dramas existenciais, naveguei por mares bravios, trilhei caminhos inóspitos, desfrutei paisagens, descobri encantos, conheci misérias, devassei conflitos íntimos, amei perdidamente…

Vivi a vida de tantos… em tantos lugares… em tantos tempos!

Os livros preencheram-me com muitas e variadas preciosidades. Alimentaram em mim, também, uma incessante e sempre insatisfeita curiosidade.

Incapaz de fazer melhor, que fale sobre isso, por mim, o poeta:

“trago dentro do meu coração,

Como um cofre que se não pode fechar, de cheio,

Todos os lugares onde estive,

Todos os portos a que cheguei.

Todas as paisagens que vi através de janelas ou de vigias,

Ou de tombadilhos, sonhando.

E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que quero”.


Texto de: Lucian Brum/Ecult

Imagem: Gustavo Vara


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