“Estamos afogadas em um caldo cultural de violência”, alerta pesquisadora da UCPel
Saberes tradicionais ganham protagonismo no Simpósio Negritude em Pauta
Saberes ancestrais, espiritualidade, ciência e políticas públicas se entrelaçam na programação do IV Simpósio Internacional Negritude em Pauta, que acontece em Pelotas entre os dias 7 e 9 de agosto. O evento é um marco para a valorização dos conhecimentos tradicionais dos povos de matriz africana, reunindo lideranças, pesquisadores, estudantes e comunidade em geral para debater práticas de saúde e cuidado que resistem ao apagamento histórico e ganham força no enfrentamento ao racismo institucional.
Durante o programa Contraponto, da RádioCom Pelotas, as convidadas Marina Motta, Juliana Goulart Nogueira e Kelen Ferreira Rodrigues compartilharam os bastidores, os objetivos e os desafios da construção do simpósio. Marina é professora da Faculdade de Enfermagem da UFPel e coordenadora do Coletivo Hildete Bahia. Juliana, conhecida como Kitanji, é autoridade tradicional dos Povos de Matriz Africana, representante do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (FONSANPOTMA) e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Sistemas Agroindustriais na UFPel. Kelen é quilombola do Rincão das Almas, acadêmica de enfermagem e integrante dos coletivos Hildete Bahia e Preto Beatriz Nascimento.
Saberes que curam: ciência, oralidade e ancestralidade
Os saberes tradicionais de matriz africana sempre estiveram presentes no cuidado com a saúde da população brasileira, mesmo antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Para Marina Motta, o desafio atual é reconhecer esses saberes como equivalentes aos conhecimentos científicos hegemônicos: "Esses saberes promoveram saúde desde sempre. Precisamos entender que a ciência não tem uma única origem".
Kelen, ao falar de sua experiência como acadêmica quilombola, afirmou que o simpósio é uma oportunidade única para legitimar conhecimentos historicamente apagados. "A universidade ainda é eurocentrada. Esses saberes não aparecem nas salas de aula. Mas eles existem, curam, e foram passados de geração em geração". A estrutura do simpósio rompe com o formato tradicional acadêmico: em vez de bancas expositivas, haverá rodas de conversa e apresentações com foco na oralidade e no protagonismo das comunidades.
Kitanji destacou que o evento também se propõe a ampliar o entendimento sobre os povos de matriz africana, suas pluralidades culturais e espirituais. "O racismo tende a uniformizar nossos saberes e identidades. O simpósio mostra que há uma diversidade riquíssima entre nós. É um espaço para escutar, reconhecer e construir juntos".
Universidade, resistência e enfrentamento ao racismo
O evento nasce de uma luta coletiva para romper com a lógica excludente da universidade. Marina compartilhou que o Negritude em Pauta surgiu em plena pandemia, como resposta à ausência de espaços institucionais para que estudantes negros e negras pudessem expressar suas culturas e conhecimentos. "Foi uma construção com muitos acertos e erros, muito abraço e muito conflito. Mas é no caos que a gente constrói algo novo", afirmou.
A realização do simpósio só foi possível graças ao financiamento do Ministério da Igualdade Racial e do CNPq. Kitanji ressaltou que esse apoio é fruto de uma luta histórica por reconhecimento e permanência de professoras negras nas universidades. "Foi preciso garantir cotas, garantir que existissem professoras negras com qualidade acadêmica e reconhecimento comunitário para que esse evento pudesse acontecer".
O racismo institucional também se manifesta nas dificuldades de acesso a recursos, nas burocracias para executar projetos e na desconfiança sobre o público que o simpósio atrai. "Chegamos a 600 inscritos e ainda assim há quem questione se essas pessoas vão realmente comparecer", criticou Kitanji, ao comparar com eventos menores que recebem aportes financeiros muito superiores. "Mas nós fazemos com ou sem. Porque nós podemos. E fazemos melhor."
Práticas de cuidado e políticas públicas: o lugar da tradição no SUS
Um dos principais objetivos do simpósio é construir caminhos para a inclusão dos saberes tradicionais de matriz africana nas políticas públicas de saúde. Para isso, a programação traz mesas temáticas, oficinas, apresentações culturais e palestras que abordam desde o benzimento até a fitoterapia, passando por agroecologia, partejamento tradicional e segurança alimentar.
Marina lembra que muitas práticas já utilizadas em serviços de saúde brasileiros — como reiki e auriculoterapia — são importadas de outras culturas, enquanto as práticas afro-brasileiras seguem marginalizadas. "Precisamos de políticas que reconheçam as nossas práticas. Hoje, as Práticas Integrativas e Complementares (PICS) do SUS não incluem nossos saberes", explicou.
Kitanji detalhou um dos principais entraves: para que uma prática seja reconhecida pelo SUS, quem a aplica precisa ser profissional de saúde. No entanto, as práticas de matriz africana são conduzidas por autoridades tradicionais, que não se enquadram nesse critério. "Isso nos impede de acessar o SUS como profissionais legítimos. É preciso reconhecer que nossos corpos e saberes são indissociáveis", defendeu.
Experiências internacionais de Angola, Nigéria e Equador também serão apresentadas durante o evento, trazendo exemplos de como diferentes países têm integrado os saberes tradicionais aos seus sistemas de saúde. "A oralidade é a base da nossa ciência. Mas ela precisa estar acompanhada da música, do tambor, da comida, do corpo. Tudo isso faz parte da nossa medicina", completou Kitanji.
Coletivos e aquilombamento: a universidade como território de pertencimento
As convidadas também abordaram a importância dos coletivos negros universitários na construção do simpósio e na permanência de estudantes negras e negros na universidade. Kelen compartilhou que se sentia sozinha até encontrar o Coletivo Hildete Bahia, onde encontrou um espaço de acolhimento e aprendizado. "O que a gente sabe, a gente não aprende na sala de aula. Os coletivos nos ensinam a resistir e a existir", afirmou.
A atuação dos coletivos vai além dos muros da universidade, alcançando escolas públicas e territórios periféricos com ações de saúde, projetos de vida e formação política. Marina destacou que o Coletivo Hildete Bahia surgiu da iniciativa de estudantes que não se viam representados na universidade. "Eu fui convidada a participar. E ali me encontrei. Hoje, minha luta é com eles e por eles. Eles são minha continuidade."
Kitanji relembrou o impacto da solidão acadêmica e da pressão para negar suas identidades. "Muitas mulheres negras sentiram que precisavam deixar parte de si para estar na universidade. Hoje, nós dizemos que não. Podemos estar inteiras, com nossa religiosidade, nossa oralidade, nossa história."
Esse reencontro com as próprias raízes, promovido pelos coletivos e pelo simpósio, ressignifica o lugar da universidade para estudantes negras e negros. Ao invés de ser um espaço que exige silêncio e adaptação, passa a ser um campo de disputa simbólica e política, onde essas presenças transformam a lógica acadêmica e introduzem outras formas de saber.
O IV Simpósio Internacional Negritude em Pauta consolida-se como um espaço de legitimação e visibilidade para práticas historicamente marginalizadas. Ao unir tradição e ciência, espiritualidade e política, o evento não apenas promove debates, mas propõe caminhos concretos para a construção de uma universidade e de um sistema de saúde mais plurais, equitativos e enraizados na realidade brasileira. É, acima de tudo, um convite à escuta, à presença e ao reconhecimento de que a produção de conhecimento é, também, um ato de resistência.
Serviço
Nome do evento: IV Simpósio Internacional Negritude em Pauta
Data e horário: 7 a 9 de agosto de 2025
Local:
- Dias 7 e 8: Auditório Dom Antônio Zattera – UCPEL (Rua Três de Maio, s/n – Centro, Pelotas)
- Dia 9: Auditório da Faculdade de Direito da UFPel (Praça Conselheiro Maciel, 215 – Centro, Pelotas)
Descrição: Evento híbrido com mesas, palestras, apresentações culturais e rodas de conversa sobre saberes tradicionais, saúde e resistência dos povos de matriz africana.
Gratuito: Sim
Inscrições: Abertas para modalidade online até 9 de agosto.
Link disponível na bio do Instagram: https://www.instagram.com/negri_tudeempauta
Imagem: Ridley Madrid
*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
0 comentários
Adicionar Comentário