Orgulho e Resistência: A 23ª Parada da Diversidade celebra Ancestralidade LGBTQIA+
Sidnei Nogueira: “A encruzilhada é um lugar de cura”
Pai de santo e macumbeiro como ele mesmo gosta de dizer, Sidnei Nogueira é um babalorixá à frente da Casa de Xangô. Também é mestre e doutor em Linguística e Semiótica pela USP e finalista do Prêmio Jabuti de 2021 na categoria Ciências Humanas.
Ele escreveu “Intolerância Religiosa”, livro que compõe a coleção Feminismos Plurais, idealizada pela filósofa e ativista negra Djamila Ribeiro. Lançado no início da pandemia, só em maio desse ano os organizadores puderam promove-lo presencialmente. Ainda assim, a obra já está em sua 4ª edição e até agora teve 26 mil cópias vendidas.
Sidnei investigou denúncias relacionadas à temas religiosos no Disque 100, um serviço do governo federal que recebe queixas sobre violações de direitos humanos. A partir desse pano de fundo, ele problematiza a hegemonia branca e o racismo na religião, e mostra porque a encruzilhada é um lugar repleto de possibilidades de vida.
Nessa conversa com o Instituto Racionalidades ele fala sobre a importância da ancestralidade em sua jornada e da experiência vivida na academia, quando tinha um pé na pesquisa e o outro no terreiro. Você está convidado a conhecer a Epistemologia preta de Exu – onde cada morte é uma chance de conquistar a si mesmo e a vida que se quer viver.
Por Clarissa Henning
Instituto Racionalidades – O seu livro dá visibilidade para a violência sofrida pelas religiões de matriz africana, e isso em um país marcado pelo racismo estrutural. Qual é a diferença entre intolerância religiosa e racismo religioso?
Sidnei Nogueira – Eu fiz uma pesquisa no Disque 100, o Disque Direitos Humanos do governo federal, de 2016 à primeira metade de 2019. Em 2019 já estava meio capenga, mas ainda funcionava. Os dados mostraram que 60% das denúncias eram de umbanda, quimbanda, candomblé, batuque – todas elas religiões de matriz africana. Em 30% a pessoa não autodeclarava a religião. Outras 10% eram contra ateus, evangélicos, católicos, protestantes, espíritas, kardecistas – eram da linha cristã. Então olhei o texto em que os denunciantes não autodeclaravam a religião, e o que eu encontrei nesses textos? “Preto fedido”, “bruxa feiticeira”, “bruxa vagabunda”, “macumbeiro”, “vagabunda que faz amarração”, “matador de galinha”. Então 30% era de gente tinha vergonha de ser de terreiro, mas que foi atacado por ser macumbeiro. Portanto, 90% das denúncias do Disque 100 eram racismo religioso. O que diferencia intolerância religiosa de racismo religioso é o componente racial que você identifica no discurso. Tem quem proteste, dizendo ser branca e umbandista, mas o ponto é que a religião é preta. Em si, ela agrega traços da africanidade, rituais africanos, rituais pretos. Isso o racismo não suporta. Ele odeia o que é negro – a não ser, claro, se for carnaval.
IR – No livro o senhor cita Muniz Sodré, em uma referência aos ritos de apagamento. Nos últimos anos, nós temos convivido com as práticas de intolerância do governo federal, inclusive do ex-presidente da fundação palmares, Sérgio Camargo. Podemos entender algumas das políticas do governo federal como exemplos desses ritos de apagamento?
SN – Totalmente. Em uma entrevista no Roda Viva, a querida Cida Bento falou dessa sociedade epistemicida, que não aceita outros modos de ser, estar e fazer o mundo, outras maneiras de existir. Essa sociedade precisa apagar existências que em alguma medida afrontam o dogma e a verdade absoluta. Para essa sociedade, a única maneira possível e respeitável de existir é a dela. A mão única, a verdade absoluta e o dogma só geram adoecimento mental, violência e morte. Chega um momento em que você começa a sentir culpa por ser diferente. Por pensar diferente, por ter uma crença diferente. Parece que você é o doente da história. É uma estratégia discursiva de poder se colocar no mundo como única possibilidade saudável, legítima, religiosa e existencial, com vistas a fazer o outro se sentir culpado da diferença gerada por essa única possibilidade.
"Ser saudável é poder ser quem você é. Quem é o menos violento? É quem se sabe. Quem pode existir como é, porque quem está inteiro não precisa destruir o outro"
IR – O que é a Epistemologia de Exu e em que medida ela se aproxima do conceito de Ancestralidade?
SN – Eu já me senti doente por ser diferente. Por ser preto. Por ser gordo. Por ser homossexual. Já alisei o cabelo, por incrível que pareça. Eu trabalhava em uma escola particular em que só tinha professores brancos. Você não acredita, mas com o meu primeiro salário comprei terno e gravata para me parecer mais branco e ser aceito na escola. Todo negro e negra no Brasil sofre de grandes adoecimentos e têm feridas abertas insuportáveis. Essa política é uma política de morte, é uma política de adoecimento. Foi Exu quem me curou. Eu descobri que a encruzilhada era mais saudável do que a mão única. Eu podia voltar para o centro da encruzilhada, que é um lugar de convergências e de divergências, e escolher. Está todo mundo indo para a direita, mas eu quero ir para a esquerda. Está todo mundo indo para trás, mas eu quero ir para frente. Quero desfazer o casamento, quero romper com uma relação ou amizade tóxica, quero começar uma nova carreira aos 50 anos. Queria me livrar dessa ideia de “viveram felizes para sempre”, que é tão mentirosa. Terminei o doutorado no dia 5 de janeiro de 2009. No dia seguinte o meu e-mail estava cheio de editais de concurso – mas eu não queria fazer concurso, só queria fazer o doutorado. Na cabeça da minha orientadora e dos meus amigos brancos esse era o próximo passo que eu deveria dar – fazer concurso, buscar estabilidade -, mas eu não queria. Eu quero poder ser preto, macumbeiro, matador de galinha, quero manter a minha barba branca. Quero ser essa pessoa que está aqui. Eu quero ser essa pessoa. Para o epistemicídio não existe outra forma de pensar a mulher, o gênero, a sexualidade ou a criança. Só existe essa, eurocêntrica, eurocentrada. Um personagem branco, homem, cis-heteronormativo patriarcal, que estabelece ao seu redor uma fronteira de espelhamento. Ele olha para esse espelho e fala: “isso é ser humano”, “isso é conhecimento objetivo e legítimo”. Tudo o que está fora do espelho é desumano. Não é conhecimento legítimo. Não é religião. Mas tem tanta coisa fora dessa fronteira europeia, mas tanta coisa… Nós precisamos acessar os conhecimentos de encruzilhada porque esses conhecimentos são cura. Foi o que me curou. Ser saudável é poder ser quem você é. Quem é o menos violento? É quem se sabe. Quem pode existir como é, porque quem está inteiro não precisa destruir o outro. Isso é paz, isso é cultura de paz, é cultura de saúde. A sociedade diz que você não pode refazer o caminho já escolhido, e isso é angustiante e gera sofrimento. Mas Exu dá uma gargalhada na nossa cara, porque ele se diverte com tudo – com a dor, com a morte, com o sofrimento. Ele ri, o tempo todo ele ri. Não tem uma história de Exu em que ele esteja chorando, isso não existe. E ele diz: “Olha, mas a encruzilhada está aqui. Venha para o centro da encruzilhada porque enquanto houver vida há também possibilidades”. O órgão reprodutor feminino é uma encruzilhada, veja o formato do útero e as trompas de falópio. Nós nascemos da encruzilhada – foi ela que nos trouxe ao mundo. Exu é a epistemologia do respeito, das diversas possibilidades existenciais. É uma epistemologia da paz.
IR – O senhor diz que a encruzilhada de Exu lhe salvou. Como isso aconteceu?
SN – Eu sou filho de uma mãe de santo, mas fui batizado e crismado na igreja católica. Nasci em uma família de terreiro, mas fui batizado. Perguntei para minha mãe o porquê e ela me disse: “Eu não sabia o que eu sei hoje, eu não tinha letramento racial nem nada disso. Na minha cabeça, eu queria que vocês se parecessem um pouco com eles”. É o mesmo movimento que eu fiz com a roupa social. É um movimento negro inconsciente para se parecer com tudo que é mais aceitável. Aqui em casa, toda a sexta-feira tinha trabalho com o Seu Tranca-Rua. Eu era adolescente e uma sexta falei com ele sobre quem eu era e para onde deveria ir. E esse espírito me falou – não tudo o que eu sei hoje, mas me falou – “Você deve ser uma encruzilhada, deve poder ir e voltar, poder ficar, poder cair e levantar. As pessoas podem ser quem são na encruzilhada”. Então eu entendi que eu podia ser preto, podia ser macumbeiro, ser filho de uma mãe cartomante, empregada doméstica e mãe de santo. Com o tempo eu fui elaborando e hoje isso se torna texto. A encruzilhada é um lugar de cura.
"Conhecimentos africanos e conhecimentos indígenas não pertencem à mesma ordem de validade. Mas todos os saberes são de encruzilhada, tanto o eurocêntrico quanto os outros"
IR – Como foi sua experiência como um pesquisador que também é pai de santo?
SN – Sempre tive uma jornada de valorização dos saberes de terreiro, sempre me interessou vasculhar esses saberes, entendê-los e valorizá-los. Tanto no mestrado quanto no doutorado eu trabalhei com o iorubá, que é a língua do candomblé no qual eu fui iniciado, o Candomblé Ketu. Eu recolho os cânticos do candomblé e depois busco os significados na língua iorubá. É esse o meu trabalho linguístico, identificar interferências ao longo do tempo e analisar como a língua portuguesa atuou ali, o que a musicalidade fez com o texto e o quanto ele se afastou do iorubá. Isso é linguística e eu não tenho dúvida que eu fiz um trabalho linguístico, mas tive que lidar com alguns pesquisadores e críticas extremamente racistas que me afastaram da academia. Quando entrei no doutorado tinha uma mãe de santo que trabalhava com a discursividade nos candomblés da Nação Angola, que são as línguas bantas. Eu sempre senti que nós dois estávamos no lugar do exótico, como se a gente fizesse menos ciência e mais folclore. Era esse o olhar da academia sobre nós. Para mim era ciência e para essa minha colega também. Fui para a encruzilhada porque não queria mais viver o sentimento de raiva ao ouvir “gostei muito do seu trabalho, mas você se expressa mais como um babalorixá do que como um cientista”. Quanto a pessoa diz isso, ela diz que eu me expresso mais como preto do que como branco. Chega uma hora em que você decide que não vai mais passar por isso. A eurocenticidade acredita que só há um tipo de saber científico. Para ela, conhecimentos africanos e conhecimentos indígenas não pertencem à mesma ordem de validade. Mas todos os saberes são de encruzilhada, tanto o eurocêntrico quanto os outros. Voltei para a academia agora, a convite de uma professora da Unicamp para dar uma disciplina. Eu fiquei no ensino privado porque, embora acabe me tornando “dador” de aula e fazendo menos ciência, eu via mais os meus – pretos e pobres. Com Prouni e Fies, eu comecei a me ver mais no ensino privado. Eu amo ser professor. A minha história os motivava, e eu sou um professor muito divertido, falo palavrão e dou gargalhada. Eu me sentia mais em casa com eles ali do que no ensino público.
"Não posso desonrar aqueles que vieram antes e também não posso viver de modo a não ser ancestralizado, porque aqueles que virão depois de mim lembrarão da minha jornada. Há um freio ético na minha existência"
IR – “Quando um chega, todos chegamos”: qual é o efeito de adotar a coletividade como base da pessoalidade?
SN – Eu tenho pensado muito que nós precisamos lutar com todas as forças por uma cultura de paz. Não se trata de uma cultura onde não exista embates, não é disso que se trata. Com cultura de paz me refiro a uma cultura que se entenda capaz de respeitar a vida do outro. Não é ausência de antagonismos até porque isso negaria Exu – mas esse antagonismo não pode matar. Ele não pode encarcerar. Em uma entrevista, a menina me perguntou se podia dizer que Exu é amor. Eu respondi que não, que essa é a paráfrase de pior qualidade. Exu não é amor. Exu é maior do que o amor. Exu é vida. O contrário de Exu é encarceramento e uma cultura de paz é uma cultura que não encarcera os meus desejos, a minha cor e a minha crença. Hoje odiar é imperativo, fazer sofrer é imperativo. Isso é muito grave, é adoecimento da pior qualidade. Hoje nós temos uma cultura do “eu me basto”: o que vale é o que eu quero, o que eu penso. Essa é a verdade única, absoluta, legítima e possível para existir. Mas a cultura do “quando um chega, todos nós chegamos” é muito africana. O continente africano é imenso e diverso, mas há um fio condutor. Se você me perguntasse “quem é você” e eu fosse me apresentar como africano eu diria: “Sou neto de um artesão, José Felino Teles, e de uma dona de casa, Josefa Felino Teles. Eu sou filho de Joéslia Teles Barreto, mãe de santo, cartomante e empregada doméstica, e de Plácido Barreto Nogueira, trabalhador da construção civil”. Eu sou o resultado deles, só existo a partir deles. Eu vou ser alguém para os meus filhos, eles é que vão me anunciar. Quando eu chego, trago mamãe, trago papai, trago meus avós. Quando eu chego, nós chegamos. Isso muda tudo, porque me traz uma preocupação ética, uma responsabilidade ética sobre a minha existência. Não posso desonrar aqueles que vieram antes e também não posso viver de modo a não ser ancestralizado, porque aqueles que virão depois de mim lembrarão da minha jornada. Há um freio ético na minha existência. Eu não estou sozinho, estou com todos os meus ancestrais – e veja que não há nenhuma noção mística aqui. Se eu vi minha mãe ser mãe de santo e cartomante, cuidando das pessoas, hoje eu gosto de cuidar de gente, sou professor. Aprendi com ela e decidi fazer a mesma coisa. Essa sociedade desconectada é uma sociedade de indivíduos, mas não no sentido junguiano. São indivíduos sozinhos, no sentido individual mesmo da palavra. Isso tira o freio da gente, tira a nossa co-responsabilidade. Quando nós, pais e mães de santo, dizemos “quando um chega, todos nós chegamos”, isso é co-responsabilidade. Eu carrego comigo os meus ancestrais e eles me carregam também. Quero dar orgulho para eles porque para nós a morte não existe. Sei que eles estão me vendo: eu quero honrá-los, e ser honorável também. A minha jornada é uma jornada que quer produzir imortalidade, quero que os que venham depois de mim me vejam como referência de uma jornada significativa.
IR – Como o senhor avalia a visibilidade de Exu no carnaval desse ano?
SN – Você sabe que Exu faz o erro virar acerto. Tivemos a vitória da Grande Rio e a vitória de Exu, e com isso até eu sofri ataques no Instagram. Um fundamentalista falou que eu tinha sangue nas mãos, porque na cabeça dele fomos nós que matamos a menina que faleceu naquele acidente lamentável com o carro alegórico. Para ele, aquele desastre foi uma oferenda para Exu e foi o que permitiu a vitória da Grande Rio. Outros disseram que eu iria morrer porque falo muito sobre Exu. Nós temos sofrido vários ataques. Tem proliferado na internet pastores, cantores gospel e influenciadores falando que a comissão de frente estava possuída e que Exu e Pomba-Gira foram romantizados. Penso que é mesmo coisa de Exu e isso é bom, porque Exu é o grito, Exu é a atenção. Vejo essa vitória como muito positiva: os orixás voltaram para a passarela. E não só Exu – os temas raciais e de terreiro voltaram para a passarela. Isso é justamente uma oposição ao fundamentalismo que temos sofrido, é um grito: chega de racismo religioso. Existe um provérbio iorubá que diz “a verdade não tem pressa”, e cada vez mais nós sabemos a verdade sobre o Brasil. O Brasil não é cordial, o Brasil não é pacífico, o Brasil não é cristão – no sentido revolucionário, não é. É cristão conservador fundamentalista. Outro provérbio que eu amo diz “atalho não é caminho completo”. Nós não vamos resolver os problemas do país pegando atalhos. Vamos resolver os problemas do Brasil colocando o dedo na ferida e foi isso que nós vimos nesse último carnaval.
IR – Para quem o senhor escreveu? Quem o senhor vê quando imagina o seu leitor?
SN – Eu sou professor. Fui professor de inglês no Ensino Fundamental I, no antigo primeiro grau, em uma escola particular, também dei aulas no Fundamental II e no EJA – Ensino de Jovens e Adultos, uma experiência de 4 anos que eu amei. Fui professor de cursinho, que foi quando aprendi a ser divertido, dava gargalhada e falava palavrão, pulava e fazia misérias no palco. E dei muita aula no curso de Pedagogia no Ensino Superior. Eu sempre amei minhas alunas e não tive nenhum problema, mas o curso tinha muitas meninas evangélicas. Se uma sala tinha 60 alunas, 50 eram cristãs evangélicas. Embora eu já quebrasse esse paradigma em sala de aula porque sempre fui muito macumbeiro, eu percebia que ali tinha uma formação cultural conservadora e hermética. Então, ao escrever, eu pensei nos meus alunos. Sempre escrevi como falo, nunca fui um escritor que se submete ao academicismo. E eu quero que as pessoas leiam, que conversem sobre intolerância religiosa e racismo religioso. Não vou falar que escrevi para os racistas porque é mentira. Eu escrevi para os meus alunos.
"Sobrevivi à minha própria autocrítica e ao fato de me comparar com as pessoas brancas que estavam lá. Eu não tive apoio de professores nem de pessoas brancas da academia e falo isso sem nenhum constrangimento"
IR – O senhor já declarou que é filho de empregada doméstica e cartomante e que seu pai era analfabeto e trabalhador da construção civil. Hoje, o senhor é professor, e mestre e doutor em linguística pela USP – e autor de uma obra finalista do Prêmio Jabuti. Aliás, o senhor dedicou o livro aos seus pais. Que desafios e apoios fazem parte dessa jornada?
SN – Acho que um dos meus maiores desafios foi sobreviver na academia, porque a academia não foi pensada para nós. Ela não fala a nossa língua, nós não temos um aporte teórico com o qual nos identificamos. Foi muito desafiador. Lembro que para chegar na USP de transporte coletivo eram duas horas e meia, então eram cinco horas para ir e voltar. E eu não era essa pessoa: lá, eu era um menininho quietinho, tímido. Se brincasse ou me fizesse uma crítica, eu chorava. Não me sentia em casa e eu sempre fui expansivo e falante. No doutorado já estava mais calejado, mas no mestrado… revisito aquele Sidnei e penso que tanta coisa eu podia ter feito diferente. Podia ter me posicionado, podia ter aceitado menos aquele lugar de sujeição. Acho que até era uma estratégia de sobrevivência ao racismo – eu ainda pensava “nossa, eles me acolheram mesmo eu não sendo suficientemente bem formado”. Olha só o que está na cabeça do negro. Então o desafio foi sobreviver às críticas e às autocríticas, porque você fica se comparando com o branco. Mas o branco morava ali do lado, nos Jardins ou no Butantã. Eu morava em Mauá. O branco falava inglês, francês, tocava piano – e eu mal falava inglês. Um tempo atrás eu recebi uma menina negra que veio jogar búzios e está fazendo o último ano de doutorado em Biologia. Ela me disse que ia desistir porque são 10 mulheres na turma e só ela era negra, e que o seu trabalho não estava à altura do trabalho das colegas. Eu falei: “Filha, o seu trabalho não tem que estar à altura. O seu trabalho é de uma mulher preta que mora na zona leste e viaja até a USP para fazer o curso. Eu também já estive nesse lugar e precisava que alguém me dissesse isso. Você está fazendo o seu melhor como pessoa negra”. Então o desafio é esse, eu sobrevivi a uma academia que não me queria. Sobrevivi à minha própria autocrítica e ao fato de me comparar com as pessoas brancas que estavam lá. Eu não tive apoio de professores nem de pessoas brancas da academia e falo isso sem nenhum constrangimento. Venci pelo meu esforço. Tive apoio da minha família e dos meus amigos. Foi magia preta. Foi ancestralidade. Esse foi o meu apoio.
Entrevista originalmente publicada no site do Instituto Racionalidades.
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